sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Hannah Arendt

Passou relativamente desapercebida na imprensa portuguesa a edição do mais recente livro de António Marques (A Filosofia e o Mal - Banalidade e Radicalidade do Mal de Hannah Arendt a Kant, Lisboa, Relógio d'Água, 2015). Facto que se lamenta, por várias razões. Desde logo, porque na bibliografia filosófica dos nossos dias é bastante raro encontrar-se uma discussão tão aberta e determinada com as teses de um autora clássica, como é o caso (quem ousará, hoje, sustentar o contrário?) de Hannah Arendt. Especialista sobretudo em Kant, Nietzsche e Wittgenstein, António Marques demarca-se audaciosamente da conhecida noção arendtiana de mal banal que a filósofa judia desenvolveu em vários momentos da sua obra e, em especial, no famoso Eichmann in Jerusalem. A metodologia de António Marques constrói-se sobretudo a partir de uma minuciosa e cuidada revisitação de um esquecido texto kantiano “Versuch den Begriff der negativen Grössen in die Weltweisheit einzuführen”, ou seja, “Tentativa de introduzir o conceito das grandezas negativas na Filosofia”. Ler Eduardo Lourenço, embora tenha de se confessar seduzido com a démarche de António Marques, abstém-se de intervir na discussão do filósofo português com a célebre autora de The Human Condition, mas convida os visitantes do blog à leitura deste livro que, entre outras, ostenta uma qualidade pouco frequente em obras téoricas contemporâneas: uma clareza expositiva assinalável.


Não menos surpreendente que o livro em si mesmo é, apesar de tudo, o final do seu capítulo 6, intitulado “Breve excurso sobre um texto de Eduardo Lourenço”*. Ler Eduardo Lourenço não o pode garantir em absoluto, mas talvez se trate da primeira vez que, num livro de filosofia contemporânea, o pensamento do autor de Heterodoxias é mobilizado para um debate que não tenha a ver directamente com a realidade portuguesa. É verdade que, nalguns casos, a reflexão de Eduardo Lourenço sobre a mitologia europeia ou sobre Fernando Pessoa colheu a atenção de autores estrangeiros. Todavia, o caso é (ou parece ser), desta vez, algo distinto. Trata-se de uma obra que discute posições de filósofos (Arendt, Kant, Heidegger) e que, embora através de um excurso, chama a atenção para um ensaio de Eduardo Lourenço que, por si só, acrescenta interesse filosófico ao debate que o livro propõe. Dir-se-á que António Marques teve acesso a esse texto, citado de O Esplendor do Caos mas que originariamente apareceu no jornal Público, apenas porque é um filósofo que vive, lê e escreve em Portugal. Decerto que sim. Mas a questão mais relevante talvez seja outra: António Marques parece recorrer a Eduardo Lourenço, não por este ser português (tal seria uma estultícia), mas porque, do seu ponto de vista, nesse «texto a todos os títulos brilhante “O Efeito Hiroxima”» (p. 77), o ensaísta trilha caminhos novos que permitem repensar, não só o terrível acontecimento ocorrido na cidade japonesa, mas até a própria ideia de holocausto.

Hannah Arendt

É curioso referir que as referências a Hannah Arendt na vastíssima obra de Eduardo Lourenço são episódicas, embora sempre pertinentes e reveladoras da admiração do ensaísta pela pensadora alemã. No entanto, numa entrevista concedida há mais de dez anos à jornalista Anabela Mota Ribeiro, Eduardo Lourenço evoca o episódio em que viu, pela primeira e única vez, Heidegger e, acedendo à curiosidade da entrevistadora, fala mesmo sobre os amores entre Martin e Hannah:

« – [A ocasião em que vi ao vivo Heidegger foi] um dos momentos memoráveis da minha vida.

– O que é que foi tão Impressionante?

– Eu estava naquela altura em Montpellier. Heiddeger estava um pouco na sombra, marginalizado no plano in­telectual, na penumbra da chamada opinião pública. Estávamos em 52, 53, depois da derrota nazi em 45. Havia um contraste fabuloso entre o ar banalíssimo da pessoa Heidegger – só reconheci um pouco do perfil, que fazia lembrar o de Cícero – e o que ele era como presença, co­mo texto. Falou de Hegel e dos Gregos. Nunca mais es­queço essa lição. Havia mais de mil pessoas na sala, su­ponho que eram todos professores, grandes professores, e, de repente, estávamos reduzidos, como se estivéssemos a ouvir em pessoa Aristóteles ou Platão.

– Consegue identificar esse elemento transbordante, esse algo que eu imagino que Heidegger teria para produzir essa im­pressão?

– Uma aura. Uma profundidade, uma singularidade, uma raridade na abordagem de uma questão já tratada por outros pensadores ao longo dos séculos XIX e XX. He­gel e os Gregos são o horizonte de todo o pensar filosófi­co típico europeu. Heidegger põe as perguntas cruciais de uma outra maneira. Mostra como o pensar era despensar. Era um silêncio enorme. O texto era em francês, depois em alemão, francês, alemão, francês, alemão, de maneira que pudesse terminar em alemão. Foi uma espécie de gri­to, um momento sacralizante, se se pode levar o termo pa­ra qualquer coisa que é do mais dessacralizante possível, que é a palavra filosófica. Não tenho nenhuma memória dessas coisas concretas, senão era romancista. Só guardo desse momento a emoção que tive. O que é que o Hei­degger tinha? Um físico de alemão banalíssimo, da Ba­viera.

– E a voz, como é que era a voz?

– Ele devia ter qualquer coisa para que uma senhora co­mo Hannah Arendt se tenha apaixonado por ele. E não se apaixonou senão pelo pensador, pela pessoa que tinha esse verbo e a iniciava na única coisa que ela própria procura­va e não era capaz de formular da mesma maneira: a so­lução intelectual em estado puro. De outro modo, é abso­lutamente incompreensível. Todos os amores são incompreensíveis. Mas esse da Hannah Arendt, ela própria filó­sofa, judia, conhecendo uma parte do passado controverso ou mesmo suspeito do Heidegger...

– O senhor pensou nesse elemento suspeito quando o ouviu? Fa­lamos da aproximação de Heidegger à ideologia nazi.

– Se soubesse que o Heidegger era um sujeito que aplaudia uma coisa tão pavorosa como foi o holocausto, naturalmente que não ia assistir. Toda aquela gente hitleriana, efusiva, laborou naquilo. Os documentários dessa época são tremendos, um povo inteiro esteve fascinado. Mas não estamos aqui para falar do Heidegger...» (“Eduardo Lourenço”, por Anabela Mota Ribeiro, Suplemento DNA de Diário de Notícias, Lisboa, 11/VI/2004, p. 24).




*Numa muito curiosa recensão ao livro de António Marques, Paulo Tunhas omite, estranhamente?, a existência do sub-capítulo dedicado a Eduardo Lourenço: cf. http://observador.pt/2015/09/04/o-arrependimento-e-para-as-criancinhas-uma-visita-ao-mal/