quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Lídia Jorge, Prémio Vergílio Ferreira 2015*


Lídia Jorge (foto de Nuno Portela in www.snpcultura.org)
Felizmente para nós, ex­iste um correio que vem de Vence. Não que seja neces­sário que esse correio ve­nha de longe, mas está provado que é bom existir um olhar que não esteja cá. Benefício da distância? Algum, sem dúvida. O longe sempre constituiu um posto privilegiado de observação. É por is­so que só de vez em quando Eduardo Louren­ço janta connosco e, no entanto, ele consegue estar presente nos rumos mais invisíveis e mais importantes do nosso quotidiano.
Mas não está em causa a felicidade da sua distanciação, e sim o rasto intelectual dum homem que tem marcado de forma indelével as ideias portuguesas, pela vertente mais me­lindrosa que um académico poderia conceber para si mesmo, ao envolver-se no fogo cruza­do das nossas lutas tribais. Por isso mesmo, Eduardo Lourenço não é um académico.
O académico, se o é, não desce à rua, não se envolve, não se mistura, não patinha as pega­das da horda da rua. Ora Eduardo Lourenço patinha. Patinha com prejuízo seu, embora com proveito para um país, onde só costuma atolar os pés neste tipo de lama, quem não tem outra forma de sobrevivência cívica. Essa é a respiração do espírito irrequieto de Eduar­do Lourenço que mais estimo. A sua forma de solidariedade com a História que mais admi­ro.
Seria um erro, contudo, mesmo nestas linhas de extrema passagem, ficar pelo reconhecimento da sua solidariedade com os nos­sos conflitos. Isso significaria estimar Eduar­do Lourenço apenas como homem de ideias, quando ele é, acima de tudo, uma figura do pensamento. Do nosso pensamento disperso, lírico, brilhante agora, e logo fátuo, do nosso pensamento tão dissimulado de nós mesmos que nunca encontrou um corpo nomeável, e por isso não existe como lombada nas estantes de ninguém. Do nosso pensamento incorpóreo à espera que de onde em onde apareça quem reúna as metades por um jeito próprio. A esse pensamento pertence Eduardo Lourenço, ilu­minando-o com um fulgor muito raro. Ora no mar da nossa dissipação, cada vez mais é pre­ciso quem possa reunir os contrários. Se isso se espera de alguns, espera-se com insistência de Eduardo Lourenço.
Espera-se que o faça a partir de uma das muitas matérias que o comovem, embora se creia que o venha a fazer montado no alto da sua disciplina mais cara – a Literatura. Porque Eduardo Lourenço não precisa confessar em voz alta donde lhe nasceu a vocação, não precisa dizer que se fez crítico por não ter sido poeta, para sabermos que a concepção da sua única escatologia se prende com a redenção pela Arte unificadora, e dela, a figura do martírio lhe aparece sob a forma de palavra. De facto, quem anda enredado n’ela sabe que uma vocação geralmente se desenvolve a par­tir dum gémeo perdido. E assim, quem diz que é crítico porque não conseguiu ser poeta, sabe que muitos poetas o são, porque não puderam ser críticos. Isto é – filósofos.
Esse é um dos complexos de culpa camufla­dos no pensamento português. Mas que o di­ga, por exemplo, Eduardo Lourenço.
Tudo o que lhe desejo é que em Vence, aqui, ou noutra terra qualquer, sobre Eduardo Lourenço caia a grande insónia, aquela dor da escuridão que permite unir o disperso. Sobre ele, muito particularmente, decifrador da nossa Baviera, seria o castigo redentor que merece.
O Júri do Prémio Vergílio Ferreira 2015. Da esquerda para a direita: Antonio Sáez Delgado, Fernando Pinto do Amaral, Elisa Esteves, Ana Costa Freitas (Reitora da Univerisdade de Évora), Eduardo Lourenço e António Cândido Franco.

*Lídia Jorge é a vencedora do Prémio Vergílio Ferreira 2015, galardão atribuído pela Universidade de Évora. Na edição deste ano, fizeram parte do júri Eduardo Lourenço, Fernando Pinto do Amaral, António Cândido Franco, Elisa Esteves (Directora do Departamento de Linguística e Literatura da Universidade de Évora) e Antonio Sáez Delgado, que presidiu à reunião realizada ontem no Colégio Espírito Santo. No mesmo edificio realizou-se, ao fim da tarde, uma sessão de apresentação do II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço de que em breve se falará com mais pormenor aqui neste blog. Para já, Ler Eduardo Lourenço recupera, com a devida vénia, o texto Felizmente existe um correio que vem de Vence”, que Lídia Jorge publicou no Jornal de Letras, Artes e Ideias em 6 de Dezembro de 1986, num dossier dedicado ao autor de Fernando Rei da Nossa Baviera. As fotos da reunião do júri do Prémio Vergílio Ferreira são da responsabilidade do Gabinete de Comunicação e Imagem da Universidade de Évora. Muitos Parabéns, Lídia Jorge!