quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Um inédito sobre Gilberto Freyre

Gilberto Freyre (Recife, 1900-1987)
Numa entrevista realizada a 1 de Maio de 2000 em São Paulo (e que está publicada em Colóquio-Letras, nº 171, Março de 2009, pp. 296-312), Rui Moreira Leite faz a seguinte pergunta a Eduardo Lourenço «Porque se decidiu a escrever sobre Gilberto Freyre?».
A resposta do ensaísta português é algo desconcertante:
«O homem era muito vaidoso. Mas eu até percebia isso, ele já era uma figura histórica e o seu livro [Casa-Grande & Senzala, presume-se] um clássico. Mas era de uma vaidade espantosa... não foi por isso que escrevi, claro. Naquela altura, não sabia que ele era de formação protestante e pensei que era católico, como toda a gente, geralmente, aqui no Brasil. Ele escreveu uns artigos ideológicos tomando posição nas coisas de ordem social, um artigo desancando uns franciscanos que estavam dentro dessa igreja do Brasil, comportando-se já como sendo a Igreja dos pobres. Além disso, muitos brasileiros não sabem disso, o regime português serviu-se de Gilberto Freyre como caução, principalmente para esta coisa do luso-tropicalismo, como caução ideológica da cruzada africana. E isso não foi uma bagatela, a prova é que ele foi o único escritor que Salazar realmente recebeu. Aí é que eu fui realmente para além da conta. Mas eu reconheço que ele é um homem que tem uma obra e, sobretudo, que tem importância na cultura brasileira. Aquelas coisas são válidas para a leitura que se faz da descolonização, mas naquela altura era, digamos do meu ponto de vista, de um tal reaccionarismo... E até, de algum modo paradoxalmente, eu achava muito complexa a teoria do Gilberto Freyre e isso já foi aqui discutido no Brasil. Vejamos: por um lado é um discurso de ordem sociológica que dá um lugar positivo à mestiçagem e isto, claro, é extremamente positivo. Mas por outro lado, esse discurso acaba por ter uma leitura de coisa racial, logo racismo. E, directamente, acaba mesmo por funcionar às avessas: é uma mitologia...» (p. 306).
À primeira vista, parece que o texto sobre Gilberto Freyre a que entrevistador e entrevistado se referem é o artigo publicado em O Comércio do Porto em 11 de Julho de 1961 e, bastantes anos mais tarde, integrado no livro Ocasionais I (Lisboa, A Regra do Jogo, 1984, pp. 105-112). No entanto, há conhecimento de outros escritos inéditos que Eduardo Lourenço dedicou ao autor de O Mundo que o Português Criou (livro para o qual António Sérgio escreveu o prefácio da edição brasileira, facto que, por si só, mostra que a simpatia por Freyre em Portugal, pelo menos nos anos Quarenta, se estendia também a declarados opositores do Estado Novo). Ler Eduardo Lourenço divulga hoje um manuscrito de três páginas que o ensaísta redigiu em 1965, na sequência da leitura de um artigo que o sociólogo brasileiro publicou em Diário de Pernambuco a 17 de Outubro desse mesmo ano. O texto de Eduardo Lourenço com o título “O.R.P. Freyre (Gilberto) ou Um Sociólogo sem Máscara” foi enviado para a revista lisboeta O Tempo e o Modo, mas a censura impediu a sua publicação.  Trata-se de um curto e demolidor ensaio (por vezes com uma contundência até inesperada), cuja leitura nem por isso deixa de ser extremamente interessante.
Recentemente a Fundação Mário Soares divulgou alguns documentos (cf. http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_982#!e_982) do espólio de João Bénard da Costa (Lisboa, 1935-2009), director da referida revista (que, de resto, também pode ser consultada no site da Fundação Mário Soares: cf. http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_23#!e_23), entre os quais se conta esse “O.R.P. Freyre (Gilberto) ou Um Sociólogo sem Máscara”, bem como um recorte do texto jornalístico de Freyre que esteve na origem do ensaio de Eduardo Lourenço. São esses documentos que, com a devida vénia, Ler Eduardo Lourenço apresenta seguidamente, ao mesmo que deseja um Excelente Ano de 2015 a todos os visitantes do blog.

O.R.P. Freyre p.1
O.R.P. Freyre p. 2
O.R.P. Freyre p. 3
Artigo de Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco (17/X/1965)