domingo, 7 de dezembro de 2014

Mário Soares: um pássaro livre*

Capa da edição francesa do livro-entrevista feito por Dominique Pouchin
1976
«Mário Soares é, em termos de teatro, o que os franceses chamam une rondeur. Ele mesmo, sob o aspecto humano, confirma esse diagnóstico que supõe gosto pelo agradável da vida, afabilidade, culto da amizade, instinto do contacto popular, amor do compromisso. Mas sob tal rondeur não é difícil descortinar um outro Mário Soares, um outro homem e um outro político. O homem é um homem de vontade forte, um homem de um propósito de que nada o fará desviar, inabalável sob as cedências de superfície e menos uomo qualqunque do que o deixa ver o seu auto-retrato bon enfant débonnaire. O político oculta sob a facilidade do abraço e a paixão democrática real, com a prática da conciliação e do compromisso que lhe são inerentes, uma consciência de missão e vocação políticas bem determinadas e resistentes. Não é «um cordeiro na pele de um cordeiro» como dizia Churchill do trabalhista Attlee. Justamente há [em Mário Soares] qualquer coisa de “churchilismo” no[seu] perfil humano e político(...). Uns encontrarão nisso motivo de esperança, outros de preocupação. Uma e outra fazem parte do nosso quotidiano político. No meio dele, maciço e dúctil, está o homem político Mário Soares. E nós com ele à espera que o homem político se torne no homem de Estado para que aponta toda a sua vida e sua recente vocação».
Ramalho Eanes, Maria Barroso e Mário Soares

1980
«Esta lamentável história Mário Soa­res-Eanes, é mais que absurda, é mera ficção. Quando muito, entre Mário Soares e Eanes o que está em causa não é uma autêntica e diferente visão política, social e económica da so­ciedade portuguesa (antes esti­vesse) mas apenas, uma diversa articulação formal do poder. Sobretudo, esteve. Porque, o mais escandaloso neste “pseu­do-escândalo”, que por mera máscara não deixa de consti­tuir uma séria ajuda para o triunfo sem limites da nova (?) direita, é que, hoje, até nesse plano, estão mais próximos do que nunca. A vida é assim, até a política. Os bons dramas que fazem os maus folhetins, são os familiares. Politicamente nada separa Eanes de Mário Soares, salvo que nada os separa. Mas como sentar dois homens na mesma cadeira, ao mesmo tem­po? Que fazer para que se sente primeiro um e depois outro?»
 Lourdes Pintasilgo e Mário Soares
1986
«Cada um se consola como pode e sabe. Após a vitória de Mário Soares – e o singular vale aqui o seu peso em outro – duas euforias de sinal oposto dominam a nossa nova atmosfera política. A esquerda julga que ganhou e a direita que não perdeu. Nestes termos, a 16 de Fevereiro não seria aquela tão apregoada data (pelo candidato Mário Soares) a partir da qual “nada seria como dantes”. Na realidade, o diagnóstico interessado do futuro Presidente da República, mau grado a persistência mítica da clivagem direita-esquerda, revelou-se exacto. Já nada é como antes do 16 de Fevereiro. Mas nada é, como os mais diversos e subtis analistas da nossa esquerda o proclamaram, diferente, no sentido anunciado por Mário Soares, quer dizer, como perspectiva nova, mais dinâmica, consensual e unitária, para a esquerda em geral e para o seu partido-charneira, quer dizer, para o Partido Socialista.
(...) Na sua verdade mais profunda, o sucesso de Mário Soares, enquanto mera não-derrota da antiesquerda, tal como era encarnada por Freitas do Amaral, não foi, nem podia ser interpretada, a nível “nenhum”, como uma vitória da esquerda. Para que tivesse havido essa vitória era necessário que houvesse antes a esquerda minimamente coerente de que essa vitória fosse a expressão. Toda a gente sabe que não há, e a ideia de nos fazer crer que existe agora, postumamente, à sombra de Mários Soares, é um projecto sem nenhum conteúdo sério, quer na ordem política, quer na económica, social ou cultural.»
Na Marinha Grande em campanha eleitoral
1994

«Mário Soares é democrata como quem respira. Nem o longo eclipse da liberdade o impediu de viver a opressão como excepcional e a Liberdade como regra. Se a fórmula não o ofendesse, pelas suas ressonâncias, é um democrata orgânico e por esta autêntica religião da Democracia rege a sua acção para o presente e aposta num futuro que tenha as caras do seu optimismo político e mesmo humano.
De algum modo tem sido esse optimismo, quase por contágio, que insensivelmente habituou a sociedade portuguesa a viver-se democraticamente. Talvez mais do que tudo pela sua maneira, tão pessoal, de “humanizar”, até nos limites do risco, o que ele sabe não ser, em última analise, huma­nizável: o Poder. Mas sob o Presidente, e coexistindo com “o animal político”, tão celebrado, qualquer [um] adivinha o antigo estu­dante rebelde, contestatário, o amoroso da vida, dos livros, da sublime desordem sem a qual a mais razoável das ordens, mesmo a da Democracia, é uma prisão.»
Retrato oficial por Júlio Pomar
1999 
«Mário Soares é, historicamente, a expressão e a versão mais con­sensual do ideal democrático trazido pela revolução de Abril. Ao longo deste quarto de século, à contre-coeur, a fina flor do antigo regime ou dos seus herdeiros, depois de se abrigar debaixo do seu vasto manto democrático, adoptou-o, ou tentou adoptá-lo a si. Era menos fácil do que julgava. Caiu do céu quando descobriu que o ex-Presidente da República não era tão “suprapartidário”, quer dizer, para ela, tão pouco “25 de Abril”, como sempre o desejou. Queria-o na gaiola dourada do suprapartidarismo, o círculo quadrado da Democracia. Daí o alvoroço de todos os gansos do Capitólio, nostálgicos do anti­go unanimismo. Em suma, todos quantos durante este quarto de século só aceitaram Abril como pesadelo provisório, senti­ram-se defraudados por esta escolha imprevisível e inconcebível, para eles, de Mário Soares. A idolatria e a vampirização do antigo autor do Portugal Amordaçado converteu-se, num ápice, em deploração e tristeza. Declaram que se diminuía, que perdia o estatuto “paternal” que reservam sempre ao símbolo da Pátria. Felizmente, Mário Soares é um pássaro livre. Nem cabe na gaiola portuguesa. E resolveu até levá-la para a Euro­pa, para que a Europa esteja um pouco mais perto de um Por­tugal onde, há 25 anos, apesar de todas as desilusões, aconte­ceu alguma coisa de que vale a pena lembrar-nos».
Com o pintor Júlio Pomar, companheiro de prisão durante quatro meses no forte de Caxias



* No dia em que Mário Soares completa noventa anos, Ler Eduardo Lourenço recupera excertos de cinco textos do ensaísta que ajudam a fazer o retrato do antigo Presidente da República que, para além disso, é uma das grandes figuras da política europeia da segunda metade do século XX. Apesar de nem sempre estarem de acordo politicamente (e de certo modo alguns dos trechos aqui escolhidos testemunham isso mesmo), Eduardo Lourenço e Mário Soares cultivam desde há muitos anos uma sólida amizade.