segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sobre "La Passion de l'Humain"

por José Cândido Oliveira Martins*


José Cândido Oliveira Martins

 Em Outubro de 2011, foi organizada uma merecidíssima homenagem a Eduardo Lourenço, reunindo um assinalável número de especialistas da obra do reconhecido ensaísta. A iniciativa pertenceu à Universidade de Paris – Sorbonne (Paris IV), através do centro de investigação CRIMIC, e em associação com a Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em França.
Sob a forma de colóquio internacional, a referida homenagem materializou-se no presente volume, tendo ambos a dinâmica organização da investigadora Maria Graciete Besse, que assina a indispensável “Note liminaire” (p. 9-15) deste livro, em honra da figura maior da cultura portuguesa. Tendo publicado uma obra muito influente, iniciada em 1949 com o ensaio Heterodoxia e prolongada até aos nossos dias em cerca de duas dezenas de títulos,  o impacto de Eduardo Lourenço atravessou as fronteiras nacionais, sobretudo no espaço da lusofonia. Em Portugal, além de homenagens diversas, o autor tem sido objecto de vários estudos académicos, bem como de volumes monográficos de revistas.
Agrupando tematicamente as catorze intervenções, de estudiosos provenientes de diversos países, o volume estrutura-se em cinco partes,  “L’intellectuel Eduardo Lourenço”; “La question de l’Europe”; “Repenser l’identité portugaise”; “La fascination de la littérature”; e “La réjouissance de la pensée”. De permeio, deparamo-nos com um “Cahier de photographies d’Eduardo Lourenço / Lettre inédite”, endereçada a Miguel Torga e datada de 1957 (pp. 113-135); e a terminar, uma breve intervenção autor homenageado, seguida de um breve quadro do seu percurso biográfico (pp. 219-232).
Como sugerido, esta obra procura abarcar a riqueza temática da produção ensaística de Eduardo Lourenço, assinalando algumas das grandes dominantes da sua heterodoxa escrita reflexiva, marcada “par la passion de l’humain”, como assinala a organizadora.  O reconhecimento de Eduardo Lourenço fora de Portugal é exemplificado por Cleonice Berardinelli, entre outros. Lembrando a estada do ensaísta no Brasil e ao salientar a admiração suscitada pelo pensamento do intelectual homenageado, através da relevância ímpar da sua vocação ensaística para os estudiosos da cultura e da literatura portuguesas, a distinta investigadora carioca rememora emotivamente a atribuição do doutoramento honoris causa a Eduardo Lourenço pela Univ. Federal do Rio de Janeiro em 1995.
Num segundo momento, destaca-se o pensamento do escritor sobre a questão da Europa, axial no labor do ensaísta. Desde logo, toda a reflexão crítica sobre o projeto europeu e o seu potencial, nomeadamente em contextos de crise, revela-se oportuníssima e fecunda, nas palavras de António Vitorino, ex-Comissário Europeu. Ao mesmo tempo, não é possível pensar a imagem da Europa idealizada e plural fora de uma mitografia específica, aliás essencial na interrogação ontológica sobre Portugal e a sua hiper-identidade nacionalista (Miguel Real). De facto, Eduardo Lourenço desenvolveu um pensamento “euro-excentrique”, destacando a “mythologie européenne”, ao mesmo tempo, ao pensando o diálogo assimétrico entre a utopia europeia e o percurso do Portugal contemporâneo – ler Portugal “en forme de quiasme” ao espelho da Europa (Roberto Vecchi). Neste domínio, é possível demarcar fases de evolução do pensamento lourenciano: primeira, uma Europa “pensée en fonction du Portugal”, a partir de uma matriz iluminista e da visão pessimista da Geração de 70; depois, um pensamento “autonome sur l’Europe”, nas palavras de José Eduardo Franco: “Eduardo Lourenço est donc l’illustre héritier de ce courant qui cherche à établir le diagnostic et l’analyse de la situation portugaise face au paradigme progressiste de l’Europe” (p. 72).



Consabidamente, outra das linhas de força do ensaísmo de Eduardo Lourenço detém-se continuadamente sobre a questão fundamental da identidade portuguesa. Para Guilherme d’Oliveira Martins,  o pensamento lourenciano sobre a “aventura portuguesa” é indissociável da herança romântico-oitocentista e, em particular, da influente Geração de 70, ao equacionar os mitos configuradores da ideia de “Portugal como destino”. Neste contexto, e a partir do desafio de Manuel de Oliveira, há quem se interrogue sobre o ensaísmo de Eduardo Lourenço enquanto “écrivain postmoderne”, na sua obsessão de explicar Portugal e a questão identitária, em contraponto com Espanha, como o faz João Tiago Pedroso de Lima, um dos responsáveis pela edição crítica, em curso, da obra completa de Eduardo Lourenço.
As sucessivas indagações lourencianas em torno do “labyrinthe de l’identité” inserem-no numa “longue et três riche tradition de l’éssai d’auto-gnose, commun parmi les grandes figures du monde ibéro-américain” (p. 100), como destaca Onésimo Teotónio de Almeida. Porém, seguindo a fundamentada argumentação deste investigador, impõe-se a necessidade de desfazer alguns equívocos; e, sobretudo, de não vincular o ensaísmo de Eduardo Lourenço a um contestável pensamento essencialista sobre a cultura ou “filosofia portuguesa” – associada a certos intelectuais conservadores –, como parece ser a tentação de certa perspetiva “científica”, ideológica e crítica da sociologia atual. Em todo o caso, neste domínio, há diferenças significativas entre os pontos de vista de Boaventura Sousa Santos ou de Ingemai Larsen, entre outros.
Um outro filão que manifestamente atravessa o pensamento de Eduardo Lourenço é o seu fascínio pela literatura, destacando-se alguns autores e obras numa recorrente biblioteca afetiva – de Camões a Pessoa, passando Eça Queirós, Antero, Oliveira Martins e tantos outros, sem esquecer vários contemporâneos. Ora, entre essas figuras tutelares, avulta Camões, mais o épico do que o lírico. Ao longo de uma vintena de ensaios, de 1967 a 2008, como analisado por Ángel Marcos de Dios, sobressai a figura do “essayiste  de la vie portugaise quotidienne et de sa conscience civique” (p. 140), em que Camões é indissociável do ensaísmo lourenciano sobre a consciência e identidade portuguesa, bem como sobre a dimensão iberista, presente quer no autor de Os Lusíadas, quer no próprio Eduardo Lourenço. Enfim, das revisitações do Poeta e do Livro, sobressai a figura de “Camões, héros, image et héraut d’un peuple entier” e sobretudo “la conscience aiguë de son temps historique comme le temps de l’agonie des propres valeurs heroïques qui lui servaient de référence”  (pp. 145, 153).
O universo pessoano ressalta como outra das grandes obsessões do ensaísta,  constituindo objeto de eloquente reflexão para Robert Bréchon. Para este reconhecido estudioso, que nos deixou em 2012, evoca o seu percurso de devoção pela obra de Pessoa, a partir de Pessoa Revisitado.  Segundo Bréchon, o ensaísmo de Eduardo Lourenço operou uma profunda revolução hermenêutica nos estudos pessoanos, pela extraordinária perspicácia das suas propostas críticas, desde o “drama em gente” heteronímico à leitura do Livro do Desassossego – e tudo servido “d’une finesse et d’une justesse parfaite” (p. 161).
Eduardo Lourenço revelou-se também um agudo crítico de poesia, quer sobre a sua trindade poética (Camões, Antero e Pessoa), quer acerca de outras vozes. Sobretudo a partir de Tempo e Poesia, configura-se uma singular “poética” de acentuada argúcia e densa “expression philosophique”, como ilustrado por Nuno Júdice. Poesia concebida como palavra intemporal e enigmática, expressão do mistério e do silêncio e, sobretudo, como “iluminação” ou fonte de claridade, nomeadamente no contexto específico do “tempo português”: “(...) la question du temps de la poésie dans la relation avec le temps de l’Histoire: une relation toujours paradoxale car un rapprochement excessif détruit solvent l’autonomie du poétique” (p. 172). Igualmente Vasco Graça Moura, sob a sugestão de R. M. Rilke, destaca a enriquecedora experiência da leitura da crítica poética de Eduardo Lourenço, sempre inovadora ao propor “un dialogue incessante avec les arts de la parole d’autruit”, desvendando sempre “dimensions insoupçonnées” (p. 176).
Por fim, “penseur fascinant et fasciné” (na palavra de Mª Graciete Besse), o ensaísmo do autor de Nós e a Europa, ou as duas razões filia-se numa multissecular matriz europeia (de Montaigne e Bacon), já que o seu pensamento, historicamente inscrito numa moderna e humanista República das Letras – como exposto por Helena Buescu – se mostra umbilicalmente “héritère d’une longue lignée de pensée de souche européenne, caractérisée par son ouverture médiatrice et sa capacite dialogale” (p. 186). Vocação congenialmente ensaística, em diálogo e revisitação crítica constante, numa permanente tensão e heterodoxia argumentativa, “Eduardo Lourenço revisite et transforme [la tradition], par son constante inquietude réflexive” (p. 189).
Também não poderia faltar uma reflexão que destacasse o contributo do escritor para o pensamento pós-colonial, a partir da revisão crítica sobre conceitos de identidade, imaginário e mito que plasmaram certa perspetiva do Portugal imperial e pós-imperial. Para Maria Manuel Baptista, uma das vertentes do ensaísmo lourenciano reside justamente na análise e desconstrução de certa “mythologie impériale” cara ao Estado Novo, “mythes de peuple découvreur, non violant, non colonialiste, civilisateur et, surpassant toute possibilité de racisme, capable de se mêler aux races autochtones, pour créer le mulâtre” (p. 199). Assim se questiona expressamente a enraizada ideia cara ao regime, de “génie civilisateur des Portugais”, legitimando de forma reiterada, na retórica oficial do salazarismo, a sua missão civilizadora e evangelizadora. O mesmo afã desmitificador estende-se à ideia de uma “décolonisation exemplaire”, na hora de regresso à original casa lusitana.
Do que fica sugerido, pode concluir-se estarmos perante um volume de significativa e justíssima homenagem de estudiosos da obra lourenciana, por um lado; e por outro, diante de uma obra que, a partir de agora, constituirá importante referência na mais atualizada bibliografia crítica sobre o pensamento absolutamente fundamental de Eduardo Lourenço. 

* José Cândido Oliveira Martins  é Professor Associado na Universidade Católica Portuguesa, onde ensina  e investiga nas áreas de Teoria da Literatura e História da Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, entre outras. O texto que aqui hoje se apresenta é a recensão crítica a Eduardo Lourenço et la Passion de l‘Humain, Paris, Éditions Convivium Lusophone, 2013 (232 pp.) publicada em Colóquio-Letras, 186, Maio/Junho 2014, pp. 269-272. Refira-se que este volume organizado por  Maria Graciete Besse, e do qual já se falou anteriormente neste blog,  está praticamente esgotado, estando prevista uma nova edição.  
Ler Eduardo Lourenço agradece a simpática colaboração de  José Cândido Oliveira Martins.