segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Tocar a rebate ou algumas "verdades" sobre o neo-realismo

Ler Eduardo Lourenço já se referiu, em diversas ocasiões, ao papel que Miguel Torga desempenhou no percurso intelectual de Eduardo Lourenço. É certo que as relações entre ambos nem sempre foram isentas de equívocos e de atribulações. Mas parece não haver dúvidas que o Autor de A Criação do Mundo (livro onde aparece um tal Edmundo Lucena de que neste blogue se falou há largos meses...) foi, por exemplo, uma personagem decisiva na edição do primeiro de volume de Heterodoxia em 1949. Nessa altura, Eduardo Lourenço era companhia muito próxima do grupo de Miguel Torga, grupo esse que, no ano imediatamente anterior, projectara um lançamento de uma revista literária mensal com o título Rebate. Nela participariam, para além de Torga e da Mulher, Andrée Crabbée Rocha, Carlos Sinde (pseudónimo de Martins de Carvalho) e Lourenço de Faria, ou seja, Eduardo Lourenço. Devido a problemas com a censura, a revista nunca chegaria a ser editada, mas o esboço da capa (que em seguida se reproduz a partir da magnífica Fotobiografia de Torga, organizada pela sua Filha, Clara Rocha) comprova como o poeta e o ensaísta mantinham uma relação muito estreita em finais da década de Quarenta.

Miguel Torga Fotobiografia (Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 95)
A partida de Eduardo Lourenço para o estrangeiro terá sido uma (embora não a única) das razões que motivou algum afastamento entre os dois homens. Na mesma Fotobiografia, o leitor depara com uma carta (com a data de 10 de maio de 1956) de Miguel Torga dirigida ao jovem Amigo que é, a vários títulos, digna de nota. Para além da intimidade e cumplicidade quase familiar do tom da missiva, em que Torga fala da morte do Pai, da apreensão do seu livro Sinfonia e do «cinismo dum Governo que, ad majorem gloria sua, organiza neste momento uma exposição da cultura que estimulou e perseguiu nos seus trinta anos de duração», merece registo o penúltimo parágrafo: «Gostei de ler o seu último artigo na página literária de O Comércio. Daquelas verdades é que era preciso que o neo-realismo ouvisse com  mais frequência!».
Miguel Torga Fotobiografia (Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 125)

De que artigo se trata? E que verdades serão essas sobre o neo-realismo? É a segunda parte de um ensaio com o título “Alguns doutrinários e críticos literários depois de Moniz Barreto” [Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, Porto, 8/V/1956, p. 6]. No artigo, Eduardo Lourenço discorre longamente sobre a crítica literária e, de algum modo, anuncia o famoso texto sobre as relações (contra-revolucionárias?) entre o presencismo e a modernidade de Orpheu. E termina, de facto, com algumas frases dedicadas ao neo-realismo, embora talvez seja excessivo ler nelas o tom de reprimenda sugerido pelo comentário de Torga na carta. Se não, veja-se:
«O neo-realismo dando ao literário um lugar subordinado na preocupação humana (ou antes subordinando o valor literário a outra coisa precisa não-literária) parece a muitos ter diminuído o interesse pela crítica literária. É talvez o contrário que é exacto. Pondo em causa a literatura, o neo-realismo contribui como poucas teorias na história humana para mostrar o carácter irredutível, problemático, enigmático, desse produto único dos homens que é a Literatura e a Arte em geral. Em face desse neo-realismo (que em Portugal e no mundo não tem sido nesse sector senão uma caricatura desastrada das indicações bem precisas do autor da Contribuição à Critica de Economia Política) existe hoje uma jovem crítica para quem o fenómeno literário se apresenta como expressão humana irredutível, tal como para os presencistas, mas ao mesmo tempo intrinsecamente mortal como o homem que a cria e transporta tanto como é criado e transportado por ela. Uma tal crítica, nascida da consciência das dificuldades e das conquistas da crítica literária contemporânea, da qual o “presencismo” e o “neo-realismo” foram entre nós as atitudes mais eficazes, poderá ocupar o primeiro lugar do panorama crítico nacional. Para isso deverá resistir à tentação da objectividade ilusória, ao repouso das explicações metafísicas que não tenham em conta o carácter intrinsecamente precário do universo literário, mundo de estrelas que não são fixas como pensava o “presencista” Ch. du Bos, mas cadentes como a história dos homens o dos seus gostos.»
É possível entrever nesta tese de Eduardo Lourenço grande parte do que será redigido mais tarde acerca do neo-realismo (seria interessante confrontar este parágrafo com o prefácio do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Nealista que integrará o segundo volume das Obras Completas). No entanto, se o ensaísta parece demarcar-se dos seus companheiros da Vértice, a verdade é que também não parece interessado em tocar a rebate com o grupo de Torga. Também por este diálogo e este desencontro com o Autor de Bichos se vai começando a desenhar o percurso heterodoxo de Eduardo Lourenço.