domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio*

Dois mil anos são incomensuráveis. Salvo na óptica trans-histórica do nascimento de Cristo que será a do jubileu romano do ano 2000. Esses dois mil anos, como História e como Cultura, mesmo apenas no quadro “ocidental”, são um tempo interiormente fracturado, sem nenhum fio ou trama orgânicos que permitam devolvê-lo a um sujeito político, histórico-cultural ou mítico, digno desse nome. Tempo crepuscular do Império Romano; coexistência caótica desse mesmo império com os chamados Bárbaros, nossos futuros pais europeus; lenta e dolorosa emergência da cultura antiga, perdida, para a luz, há duzentos anos julgada negra da Idade Média; revisitação criadora da mesma cultura antiga, invenção da ciência moderna que é ainda a nossa; e, enfim, ininterrupta desintegração da cultura cristã, começada com o Renascimento, tais foram alguns dos “tempos” destes dois mil anos. Nestas temporalidades heterogéneas e heteróclitas, que símbolos emergem dignos, ainda, não só de lembrança como de comemoração num fim de século que diz adeus a vinte séculos que fizeram o mundo como o conhecemos? Que ícones, ídolos ou anti-ídolos sobrenadam ainda na nossa memória ocidental, no momento em que, submersa por uma informação incontrolável, já nem a si mesma se vive como História? A História Universal é uma ideia e um imperativo inculcados pela visão bíblica do mundo. Como ideia, data de Herder. Antes dele, era um repertório genealógico que prolongava o discurso mítico do Génesis. E é claro que esse discurso não tinha vigência em épocas pré-bíblicas, nem no interior de outras cronologias e culturas, além de não ser possível nas ditas épocas sem “História”. As escolhas de momentos ou personalidades susceptíveis de simbolizar estes dois mil anos, arbitrariamente talhados na manta rota do tempo, são inumeráveis. Elas são determinadas pelo conhecimento que delas possuem os que as consideram da sua linhagem ou precisam delas para legitimar o seu próprio estatuto de herdeiros. Escolher o Cid ou Rolando é escolher uma linhagem tribal, antes do universal. À parte os que nestes dois mil anos fundaram “religiões”, e a esse título são incomemoráveis por continuarem presentes, as outras grandes figuras da nossa Cultura, além de incontáveis, devem o seu estatuto ao amor que lhes devotam as culturas para quem eles são património activo e fonte do seu imaginário. Durante os dois mil e novecentos anos de vigência cultural greco-latina, Virgílio, mas também Horácio ou Ovídio, foram imaginário europeu e mesmo ocidental, embora caiam fora dos dois milénios que findam. Quem, como eles, usufruiu e, sobretudo, usufrui ainda de uma glória comparável? E em que domínio? E em função de que propósito, não só presente, como futurante? A ideia de um panteão cultural universal é tão utópica como a de História Universal. Aliás, um panteão não tem mais coerência que um dicionário: é uma convivência póstuma de deuses que pouco ou nada aproxima, reunidos por obra e graça da Indiferença. Não são outra coisa os repositórios de celebridades que chamamos Enciclopédias. Lado a lado, repousam não só génios de diversa e até inconciliável espécie (Nostradamus e Galileu não são génios da mesma espécie), como absolutamente incomparáveis. O que não nos impede de os comparar sem dúvida para nos inventarmos o panteão ideal de uma Humanidade que transcenda as clivagens religiosas, filosóficas, culturais e étnicas. Esta mitologia das páginas cor de rosa de todos os Larousse funciona como no Ocidente cristão funcionava outrora o (Flos Sanctorum) que hoje só tem emprego nos calendários e na meteorologia. Os santos da nossa época são outros. Eusébio, por exemplo, que há dias manifestava a sua frustração por ter sido designado como o sexto melhor jogador do nosso século. Sem se ter por incomparável – o que, se calhar, até é – Eusébio pensava num segundo lugar. Que foi o melhor do seu tempo português, quem o duvida? Que talvez tenha sido o segundo ou terceiro do tempo mundial de Pelé, ou de Di Stefano é hipótese que não escandaliza. A verdade é que, por incomparável, ele ou os outros ídolos do seu tempo nem deviam admitir ser comparados. De qualquer modo, o que não tem sentido é comparar gente de épocas, contextos, códigos diversos. Não só Alexandre com Aníbal ou este com Napoleão, comparação clássica, mas também Galileu com Newton ou com Einstein (que são, afinal, um só “homem”), mas muito menos Gil Vicente com Shakespeare, ou Monteverdi com Mozart. Antes de estarem isolados pelo génio, cada um está isolado pelo seu tempo. No tempo português, a hora de Eusébio não foi a da Vitor Silva, nem a de Pinga ou de Peyroteo, como a de Borg não foi a de Rod Laver ou a de Coppi a de Merckx. Essa gente nunca se conheceu. Estão separados dos outros como as estrelas, mesmo próximas. Ninguém os pode comparar. Que mais não fosse, só por isso já seriam “incomparáveis”. Só Deus os viu jogar juntos. Mas não confiou as suas apreciações a ninguém. Que isso console o nosso mal comparado Eusébio. 




*Eusébio [da Silva Ferreira] morreu esta madrugada. O texto de Eduardo Lourenço que hoje aqui se recorda foi publicado com o título Incomparáveis ou a tristeza de Eusébio na revista Visão a 21 de Janeiro de 1999 (p. 91) e constitui, de certa forma, uma homenagem à simplicidade e à grandeza do famoso Pantera Negra.