quarta-feira, 29 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 85): Tereza Coelho*

Tereza Coelho



(…) O Carrefour des Littératures tomou este ano [1992] uma orientação mais “filosófica” que “literária”. Todas as manhãs são preenchidas com sessões públicas do seminário Geofilosofia da Europa, de Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, durante as quais os convidados [onde estão, por exemplo, entre muitos outros, Jacques Derrida, Paulo Virilio, Giorgio Agamben e Étienne Balibar] “pensam a Europa e as suas fronteiras” (…).
A última sessão de trabalho (…) [partiu] da noção de “figura”. Particularizando: a “figura” pressupõe uma matéria. Nessa matéria existe algo que se modela. Portanto, o que existe é um trabalho de tipo estético para lhe dar uma forma; daqui resulta um ser de ficção que funciona como modelo para outros seres (veja-se a “figura da filosofia” em Sócrates). A partir daí, estabelece-se uma relação entre figura e identidade: para se constituir a si próprio, o homem tem de se projectar a si próprio, o homem tem de se projectar para fora de si; e projectar-se para fora de si é adquirir uma figura.
Como é que isto se articula com a Europa? Bem, segundo o que se apurou ao longo da sessão, a Europa vive uma crise de figurabilidade; a tendência actual é para abandonar o desejo de figura. A questão fundamental é: será possível e desejável ter uma outra figura para a Europa dos nossos dias? Ou ainda: depois da figuração ariana e de Auschwitz, que constituem a desfiguração absoluta, será possível constituir novas figuras para a Europa?
Eduardo Lourenço, na mesa, acentuou que a crise da perda da figura vinha de há muito tempo atrás, quando Duns Scott, ao inventar o nominalismo, começou a separar as palavras das coisas; mas que, de certo modo, a cultura ibérica, devido ao cristianismo e ao trágico barroco, tinha preservado o valor da figura e, por isso, se sentia mais desamparada, frustrada, perante essa perda do desejo de figura que se estaria a manifestar no mundo contemporâneo.


*Tereza Coelho ( Quelimane, Moçambique, 1957 - Lisboa,  2009), Jornalista e Editora.
O texto que aqui se reproduz é um excerto da  reportagem “A Europa dos refugiados”, Público, Lisboa, 11/XI/1992, p. 32