sexta-feira, 24 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 67): João de Melo*


 Eduardo Lourenço e João de Melo, à porta da Reitoria da Universidade de Lisboa



Se me perguntarem qual a pessoa com quem até hoje mais gostei de conversar, responderei sem qualquer hesitação: Eduardo Lourenço. Por detrás do sábio e estrénuo pensador, homem dos mil textos, teórico do ser e de “o que em mim sente está pensando” (Pessoa dixit), há um peripatético que fulge na sua própria iluminação, no verbo que fulgura dele para nós, que se expande numa alegre e entusiástica abstracção de tudo. E ele como que se esquece do que existe, e do tempo e do sítio onde está, até ao fim de uma ideia e da sua tradução em linguagem; fica para trás do grupo que agora caminha lá mais adiante. Basta-lhe um ouvido atento, um sorriso sério, um par de olhos fitos no seu olhar. De certo modo, é um tagarela da alegria, dele e nossa, mas com a inteligência de rir da sua inépcia para as coisas práticas, e de o fazer também para castigo dos costumes.

Dizia-se mais ou menos o mesmo de Vitorino Nemésio e da sua incapacidade de ser banal, mesmo quando se distraía a falar dos assuntos mais quotidianos. Tal como ele, Lourenço oscila entre o talento e o génio de caneta na mão. Mas se em Nemésio eu me sinto poética e romanescamente descrito à luz da Lua das mesmas ilhas, é na obra do filósofo que me obrigo a pensar-me e a conhecer-me. Não vale a pena agitar títulos: inevitavelmente os mais óbvios, de entre uma boa dúzia de livros que dele li, porventura os ditos “canónicos”. Importa dizer que, para além do sal dos seus saberes, Lourenço ensinou-me a ler poesia, a olhar para dentro da minha hiperidentidade portuguesa, a ser ibérico e europeu contra o meu arreigado cepticismo unionista. Leio-o com uma devoção de discípulo deste ensaísta que é também poeta, prosador e esteta da sua língua. A haver uma poética do ensaio, ela está toda na prosa dele – pois que escreve como um poeta, por imagens e conceitos melódicos, maravilhosamente.

Tive a honra de o convidar e de o receber várias vezes em Madrid, ao serviço da embaixada, e de ter encontrado tradutor e editor para uma antologia dos seus ensaios, “Europa y nosotros, o las dos razones”. E o júbilo e o privilégio de comer com ele, de poder testemunhar que a mesa era um dos seus prazeres – como a política, as ideias, a literatura, a arte, as cidades, a terra natal, a família, o futebol e as ruas do mundo. Uma vez, em que estávamos já a mais de meio de um jantar, ele chegou atrasadíssimo. Sentou-se à minha frente, comeu a sopa, falou, como sempre, de tudo e mais alguma coisa. Veio o segundo prato, só então ele acordou dos necessários e distraídos pensamentos. Olhou para o peixe, em pânico, deu com salto para trás na cadeira, ergueu os punhos e bradou, alto e bom som:
“Ahhh! Mas eu já tinha jantado!”


*João de Melo
Escritor
Texto inédito enviado gentilmente pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço