sexta-feira, 17 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 57): Fernando Catroga*


Eduardo Lourenço, João Rasteiro, Hélia Correia e Fernando Catroga na Casa da Escrita em Coimbra (Abril de 2012)

Pode-se não encontrar um sentido para a existência, mas, desde que haja memória, a inesgo­tabilidade do enigma não destrói a solidez das raízes. Âncora que ganha novos contornos quando o futuro é quase só passado. Mas, aí, atinge-se o momento em que este é ainda mais reinventado. Quando muito, a idade vai abrindo frechas, para, aqui e ali, aquele entrar, pelo menos, como nos­talgia. No mais, os romeiros da vida – como Eduardo Lourenço e Vergílio Ferreira, aedos, cada um à sua maneira, da decifração da Esfinge – trouxeram sempre no seu bornal o sítio de onde partiram. E não será errado dizer que se está perante uma ligação quase religiosa, a que não é estranha a ideia de “pátria”. É que esta é, na sua semântica primordial, um convite à filiação, mesmo sabendo-se que só esquecendo se pode recordar.

Terra dos pais, terruño, Heimat, “chão”, ou simplesmente “a minha terra”, os antigos, me­lhor do que os modernos, sabiam-na formada não só pelos vivos mas também pelos mortos e pelos manes protectores que a consagravam como “casa”, ou, talvez melhor, como “lar”. Por isso, a sua evocação põe em cena tempos e espaços inseparáveis das mediações afectivas que a não deixam morrer. A “pátria”, ao remeter para a origem das origens, e a “mátria” criadora do (nosso) mun­do. Ela é o início da memória individual no seio da memória colectiva, fundo que apela para uma espécie de complemento do papel de mãe, umbilicalidade que a simples, densa e telúrica expressão “terra” bem conota. Assim, não admira que, mesmo quando ela foi ingrata para muitos dos seus filhos, nestes perdure uma sensação de dívida e de gratidão, contas que, porém, serão impossíveis de saldar. O que se recebeu será sempre mais do que aquilo que cada geração poderá retribuir.

Também facilmente se aceita que, pela memória, ela é desterritorializável, pois viaja – já al­guém o afirmou – com o pó colado aos sapatos de quem emigra, ou dentro de uma mala de cartão que passa todas as fronteiras sem pagar direitos alfandegários. Bem vistas as coisas, ela é o lugar que não só sobrevive, para além do seu, em todos os não lugares, como continua omnipresente mesmo que o regresso nunca venha a acontecer. E a distância antropomorfiza-a ainda mais, incluindo o seu espaço. Depois dos românticos, disse-o Ortega y Gasset: a pátria é a paisagem, apropriação terna e interior que, comummente, se julga ser a reprodução das coisas tal qual elas existiram (e existem), quando, em última análise, constitui uma representação, em alguns casos de cariz espectral (que, neste caso, os nevoeiros e neves da Serra ajudam a encenar), que confirma o trajecto de vida do evocador.

Para dar verismo a essa representificação, não basta a solidez granítica do território, nem a altivez dos castanheiros, ou a frescura dos riachos, que se presume estarem ali (em São Pedro do Rio Seco; em Melo) desde os primeiros dias narrados pelo Genesis. E, não obstante a diáspora, o que resta de habitantes, com os seus gados e os seus cães, só não é tido por contemporâneo de Adão e Eva, porque o mundo em que vivem sugere, não o Paraíso, mas o drama do Calvário. Logo, se, a seu respeito, se pode falar de Idade do Ouro perdida, esta só existe devido à necessária função sacralizadora, mítica e cordial da recordação.

Pensando bem, este trabalho identitário desenha fronteiras interiores que, se demarcam espaços e tempos (o da Guarda; o de Coimbra; o de Lisboa, para Vergílio), também se articulam em narrativas auto-biográficas, mas abertas ao desconhecido e ao outro, e objectivadas em percursos de vida (particularmente o de Lourenço) que vieram juntar à pátria natálica outras “pátrias” e outras pertenças. E se isso os fez andarilhos que ousaram lançar-se por caminhos que sabiam poderem le­var a lado nenhum, o humanismo de ambos nunca se deixou seduzir, nem pelo discurso paroquial, nem pelo abstracto cosmopolitismo iluminista. Afinal, a vida ensina que é possível ser-se habitante de várias pátrias, embora todos tenhamos, mesmo quando o ignoramos, o nosso Paris-Texas, como Eduardo Lourenço tem o seu em São Pedro do Rio Seco, prova ontológica da única pergunta sobre a origem que, sem metafísicas, pode ser respondida.

*Fernando Catroga. Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.  
O texto que, por vontade expressa do Autor, aqui se reproduz foi publicado com o título “Nunca se sai de onde se partiu” em Um (e)terno olhar. Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda, Guarda, Centro de Estudos Ibéricos, 2008, pp. 133-134.