quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 42): Margarida Almeida Amoedo*

Margarida Almeida Amoedo

Numa das memórias mais minhas em que reconheço presença de Eduardo Lourenço, está o professor e ensaísta muito calmo, pelo menos aparentemente. Concentrado, lê um texto [registado em folhas grandes; seriam A4, uma vez que prendê-las apenas com uma mão e no regaço, como acontece a quem não tem uma mesa onde buscar apoio, exigia algum equilíbrio] e vai-lhe acrescentando palavras, vírgulas e acentos [talvez, pois a esferográfica junto ao papel quase não oscilava e o tamanho da letra ou a distância – estávamos perto e longe, ao mesmo tempo – não me permitiram vislumbrar quase nada]. Estamos num auditório da Fundação Eng.º António de Almeida, no Porto, durante o primeiro de três dias de um Colóquio Internacional dedicado ao tema “A Dor e o Sofrimento hoje”.

27 de Março de 2000 – Eduardo Lourenço não é, segundo o Programa do evento, conferencista; faz parte do Painel A. Está previsto que falem, antes dele, outros convidados. Cheguei atrasada e já só assisto ao segundo bloco de conferências da manhã. [Cheguei atrasada... “que sorte!” – pensarei depois.] Sentei-me o mais discretamente que pude a meio da sala, num lugar junto à coxia, num lugar próximo ao ocupado por Eduardo Lourenço. [Felizmente não reparei logo e sentei-me ali.] Demasiado perto para olhar para ele e para o que faz sem ser ostensiva, demasiado perto para poder resistir à tentação de ver, não o que escreve [já o disse], mas como o faz, com que atitude o faz. No palco um orador apresenta as suas ideias: Alejandro Llano, da Universidade de Navarra, explana a tese segundo a qual a dor e o sofrimento não nos diminuem do ponto de vista antropológico, uma vez que a condição humana tem uma vulnerabilidade intrínseca. E Eduardo Lourenço quase não levanta a cabeça dos seus papéis. Outro orador apresenta outras ideias: Nuno Nabais, da Universidade de Lisboa, dedica-se ao tema “As antinomias do conhecimento da dor” e toma a dor nas perspectivas fisiológica, histórica e etimológica, e filosófica. Durante todo o tempo, Eduardo Lourenço parece confrontar-se apenas com as suas folhas.

Chega a hora de almoço sem que eu tenha ouvido uma palavra do filósofo. [Bem quisera eu aproveitar a ocasião de ele estar ali ao lado e só, para lhe dirigir uma saudação especial, mas, sabendo que era a mim que esse cumprimento importava, limitei-me, num gesto de altruísmo porventura facilitado por timidez, a deixá-lo passar à minha frente.] Eduardo Lourenço fará a sua intervenção ao início da tarde, no painel intitulado “Literatura e Sofrimento”.

Depois de Mário Cláudio, Pinto do Amaral e Carlos Magno, depois das referências a clássicos feitas por uns e da também interessante referência à relação entre as imagens da “dor” nos meios de comunicação de massas feita por outro, é a voz entre hesitante e firme, entre baixa e cavada, de Eduardo Lourenço que sublinha a especificidade do momento de encruzilhada na viragem de século: vimos de um tempo em que a dor e o sofrimento de um certo tipo nos saturam completamente (e de que o Holocausto é símbolo máximo) e entra-se num período, “no Ocidente rico e bem calafetado” [anotei ipsis verbis], em que se busca o sentido, o lugar do sofrimento na experiência humana. Do seu contributo para a reflexão, registo o contraponto entre o Budismo, como desrealizador da vida, porque desrealizador do sofrimento, e o Cristianismo, não como um dolorismo, mas porque nele a cruz está inscrita na existência humana. E, a rematar a sua intervenção, o pensador deixa-me atónita, ao exprimir o seguinte [que justificava, segundo julgo, a atitude de interiorização em que o tinha vigiado na sessão da manhã]: «A dor e o sofrimento não nos ligam ao mundo, separam-nos dele. E o resto é silêncio».


*Margarida Almeida Amoedo, Professora e Directora do Departamento de Filosofia da Universidade de Évora.
Texto inédito gentilmente enviado pela Autora para Ler Eduardo Lourenço.