quarta-feira, 15 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 36): Rui Jacinto*


Eduardo Lourenço na sua antiga casa de Vence, 2004
(foto de Rui Jacinto).
 Na última década tive o privilégio de partilhar alguns momentos com o Professor Eduardo Lourenço, conhecimento que, até 26 de Novembro de 1999, era esparso e distante. Resumia-se, até então, a esporádicas leituras de algum artigo, publicado em jornais ou revistas, mais ou menos heterodoxas, a um ou outro livro desfolhado em livrarias, a qualquer passagem fugaz pela televisão. Retenho desse tempo longínquo o Labirinto da Saudade, onde reencontro, a cada regresso, subtis mensagens, como aquele aviso, feito em 1977, que “somos um país de pobres com mentalidade de ricos”.

Naquele dia de Novembro, no Hotel Turismo da Guarda, que continua a resistir ao tempo mas, certamente, com dificuldades em compreender a incúria dos homens, o que foi um ocasional e gratificante encontro permanece no meu espírito com a magia do que pela primeira vez acontece. A Guarda celebrava com pompa e circunstância “oito séculos de altiva solidão”, o oitavo Centenário da concessão da carta de foral pelo povoador D. Sancho I. Ao pequeno-almoço, Eduardo Lourenço manifestava não ter sido capaz de concluir o discurso que, daí a momentos, em memória da sua cidade, ia proferir na sessão solene daquelas comemorações.

Deixava transparecer leves sinais de irrequietude que atribui a um aparente nervosismo; reconheço, hoje, decorrer duma infinita curiosidade por tudo que o rodeia, que a calma só regressa quando as palavras fluem em demanda de novas ideias e realizáveis utopias. Na sua presença, ontem e sempre, a conversa irá girar em torno de temas vários, dos mais banais aos mais complexos, do que acontece no Mundo e na Europa, em Portugal e em Espanha, na Guarda ou em S. Pedro de Rio Seco; discorreu, então, sobre as figuras tutelares de Unamuno e Oliveira Martins, o interior e a fronteira, o passado, o presente, o futuro, revisitou Coimbra e a nossa Universidade, falou da necessidade duma cooperação que reactivasse o ancestral eixo cultural e cientifico que une Salamanca a Coimbra.

Portugal vivia, entre o rescaldo da Expo 98 (Nós como futuro) e o advento do Euro 2004, uma das suas fases eufóricas. Aquele memorável discurso foi terminado a improvisar, com alguma timidez, o que considerava ser a vocação que desejava para a Guarda: “Eu penso que nesta cidade se podia imaginar qualquer coisa como um Instituto de Civilização Ibérica, onde os nossos laços comuns que só Oliveira Martins foi capaz de apreender fossem repensados para que nós soubéssemos efectivamente quem somos e onde estamos, não tão isolados como imaginamos, mas sempre sob o olhar do outro, para sabermos quem é o outro, com quem desejamos dialogar e, assim, nos defender de uma maneira diferente da que foi a nossa durante séculos”.

Num país de poetas, será este, porventura, dos raros casos em que se poderá dizer, com razão e proveito, o homem sonha e a obra nasce: se a inspiração do mentor foi indispensável para tornar realidade o Centro de Estudos Ibérico, é a sombra tutelar do seu patrono que ajuda, entre percalços e vicissitudes, a consolidar o CEI. O itinerário de uma década inclui alguns momentos partilhados que merecem registo para memória futura: Prémio Eduardo Lourenço (2004), inauguração do edifício da Quinta do Alarcão (2005), onde está sediado o CEI, contíguo à Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (2008). Estes espaços físicos confirmam, com propriedade, que o saber ocupa lugar. O legado que deles emana, dificilmente mesurável, tem tradução palpável em várias edições, tributárias de Eduardo Lourenço, de que se destacam Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia (2003), lançada por altura de Coimbra, Capital Nacional da Cultura, Um (e)terno olhar: Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda (2008), Leituras de Eduardo Lourenço: um labirinto de saudades, um legado com futuro (2008) e Vidas Partilhadas (2013). Estas sentinelas pontuam um Regresso sem fim (2011), metafórico caminho rumo à sua mátria, a pequena pátria dos maternos espaços onde permanecem origens e memórias.

O corpo e o espirito, durante estes anos, também se alimentaram de pequenos episódios cujas indeléveis marcas dificilmente se apagam. Na informalidade de alguns repastos a actualidade das palavras e a profundidade das ideias tornaram aqueles convívios pessoalmente gratificantes, culturalmente enriquecedores, intelectualmente estimulantes. Durante uma viagem, em Abril de 2004, onde fez directamente Vence-Lisboa-Guarda, quando iniciamos a subida do Porto da Carne, o tempo adensa-se e, na chegada ao Hotel Turismo, de boa memória, começam a cair uns farrapos de neve. Exclama: Este é o tempo da minha infância! Esta é a minha Guarda! O abandono das cálidas atmosferas mediterrânicas e o brusco retorno às “frias claridades” da Guarda provocaram tal choque térmico que, além do preocupante percalço de saúde, relembrou que o ar da Guarda é sempre diferente. Outro tocante encontro aconteceu em Vence (2007) preparatório do envio dos livros doados à Biblioteca Municipal. Entrar no seu escritório foi aceder a um universo criador onde a exuberância do esplendor do caos contracenava com uma certa nostálgica despedida. Guia na visita a Chapelle du Rosaire, concebida e decorada por Matisse, os avisados conselhos de Eduardo Lourenço levaram-nos a contornar as estâncias turísticas a favor das vilas fortificadas, as Aldeias Históricas da Cote d’ Azur, que guardavam a antiga fronteira do Var, Saint Paul, onde repousa uma cópia do Pensador de Rodin, Eze, onde Nietzsche escreveu já não sei que obra.

Os defeitos deste testemunho serão relevados pela generosidade do Mestre. Na ausência de arte para retribuir os conhecimentos transmitidos e o tratamento sempre amável, resta o tributo dum técnico, comprometido em encontrar caminhos que rompam com a “efectiva interioridade, mais filha da história do que da geografia”, atento a atempados e lapidares conselhos: “O nosso grande problema, enquanto portugueses, neste fim de século, é integrar a realidade, a banal realidade europeia, com os seus imperativos de organização, de competitividade, de invenção. Sem perder um certo arcaísmo, um certo perfume de vida que se lembra ainda do seu passado rural, vida banhada na doce luz da Finisterra. Por muito tempo ainda, para nós e para a Europa, seremos uma espécie de reserva de sonho”. Que urge reinventar!



 *Rui Jacinto, Centro de Estudos Ibéricos. 
Texto inédito gentilmente enviado pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço.