quarta-feira, 15 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 32): Miguel Real*


Miguel Real

Com os meus parabéns e como testemunho das comemorações dos 90 anos de vida de Eduardo Lourenço, talvez recordar uma síntese do seu melhor livro: O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português, publicado em 1978, exactamente há 35 anos.
É um livro admirável, tanto pela diversidade dos temas que aborda, todos versando sobre a cultura portuguesa, como pela desmontagem analítica a que procede relativa à “imagem” de Portugal. É como se, neste livro, os portugueses se vissem despidos, sem a envoltura dos ouropéis ideológicos, mirando-se frágeis, menores e diminuídos ao espelho de si próprios e da Europa.
Segundo Eduardo Lourenço, temos historicamente caminhado num espaço conflitual entre o modo como somos e o modo como imaginamos ser ou que deveríamos ser. Existe, portanto, na alma de cada português, uma desproporção, uma clivagem, melhor, um duplo estado de espírito em que cada um sente o que ontologicamente é (pequeno país, pobre e carenciado país, recursos limitados, baixa qualidade de vida, forte ruralismo tradicional, incipiente indústria, frágil organização financeira nacional, hábitos passadistas, tecnologia nacional ínfima) e o que imageticamente lhe é dado ver através da leitura da história pátria (o mito dos Descobrimentos, a aventura da Expansão Ultramarina, o sonho do Quinto Império, o desejo do progresso antevisto na Europa iluminista e positivista, a quimera de um Estado imperial uno, do Minho a Timor, e do seu contraponto socialista-comunista, o Estado solidário e igualitário dos trabalhadores). A esta dupla consciência que tem animado (e anima) a maioria dos portugueses, sintetizada na diferença imaginária, em cada época histórica, entre a realidade e a ficção, é o que E. Lourenço designa por “o irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses fazem de si mesmos”. Este “irrealismo”, esta “forma mentis” de ser português, condição histórica permanente de Portugal, tanto tem arrastado o país para o maior dos miserabilismos culturais (o espírito decadentista entre os séculos XVII e XX) como para a crença de que somos por condição e destino um povo eleito, por vezes adormecido, mas sempre virtualmente preparado para lançar as “novas naus” da civilização.
E. Lourenço designa esta “forma mentis” de tipo “traumático”, ao modo psicanalítico, sublinhando que algo na nossa cultura nacional sofreu de fortíssimas perturbações civilizacionais que lhe recalcaram a possibilidade de uma vivência integrada na normalização média da existência europeia. Com efeito, ser sempre mais ou menos, tudo ou nada, superior ou inferior, vanguarda ou proscrito, príncipe ou gáfaro não é, sejam quais forem os padrões epocais de estandartização dos comportamentos, um modo habitual de vida.
E. Lourenço tenta sintetizar genealogicamente a origem e o descobrimento histórico desta particular maneira de ser português erguendo três momentos-chave por que a nossa consciência se feriu ou se imaginou ferida. A nossa personalidade cultural desloca-se não especificamente em função destes três “traumatismos”, mas mais em função das suas consequências no modo social de vivermos e, especialmente, no modo como imaginamos as causas do nosso viver. Trata-se de fundamentar não a realidade histórica tout court, mas de compreendê-la na mediação imagética pela qual os protagonistas da nação interiorizaram culturalmente o passado e as exigências do presente, isto é, se auto-conhecem; deste auto-conhecimento que, porque vivido, é sempre ilusório (isto é, historicamente nem verdadeiro nem falso), ressalta um conjunto de imagens históricas epocais, registadas na historiografia portuguesa, as quais, por sua vez, cruzadas e organizadas, constituem a “imagiologia” que define a análise cultural propriamente dita de E. Lourenço.
O primeiro traumatismo da história de Portugal relaciona-se directamente com o espírito de cruzada por que o Condado Portucalense nasceu, espírito aventureiro, simultaneamente santo e guerreiro, mártir e heróico que definiu a reconquista do território continental: “O nosso surgimento como Estado foi do tipo traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos levantámos até à plena assumpção da maturidade histórica prometida pelos céus e pelos séculos a esse rebento incrivelmente frágil [Portugal] para ter podido aparecer, e misteriosamente forte para ousar subsistir. (Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão freudiano com sacrilégios maternos e palavra quebrada, Teresa, Egas Moniz...)”. O acto de nascimento de Portugal “apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível e do milagroso, ou num resumo de tudo isso, do providencial”. Assim, essa “conjunção de um complexo de inferioridade e de superioridade” cumpre “uma única função: a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade”.
Eis o bilhete de identidade dos portugueses: esta “intrínseca fragilidade” tem sido compensada pelo “irrealismo prodigioso” por que nos vemos a nós próprios como seres dotados de missão histórica providencial. E a verdade é que, historicamente, existe uma fundamentação tanto para a existência deste duplo complexo quanto do irrealismo imaginário por que nos sonhamos: “... se exceptuarmos talvez a Macedónia e Roma, poucas vezes um povo partindo de tão pouco alcançou (...) um direito tão claro a ser tido por grande”. A verdade é que, mesmo na “hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção”: “da nossa intrínseca e gloriosa ficção os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema ‘épico’ assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e requiem?”. “O primeiro traumatismo fora superado por três séculos de pé no redemoinho peninsular e século e meio de equilíbrio sobre o ‘mar português’”, mas, “antes da noite, o poema [os Lusíadas] recolhe a nossa primeira e eterna figura que acaso, sem ele, houvesse perdido a chave e a vontade da sua ressurreição”. Desta magnificência ilusória, incapazes de controlar tão vasto império, enredados na política de europeia de expansão, acordámos sentindo-nos “às avessas”, experimentando “na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas que o primeiro”: “nesses sessenta anos o nosso ser profundo mudou de sinal”. De povo excelso passámos a povo subalterno, inferior, desprezado politicamente pela restante Europa: “tornou-se então claro que a consciência nacional (...), que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova de fogo. O viver nacional (...) orienta-se nessa época para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva do passado” – nasce o sebastianismo como liquidação “no imaginário e em termos magníficos (d)o segundo traumatismo, numa barroca inversão que vale bem outras futuras”: “de cativos, a senhores do sonho do mundo, de humilhados e ofendidos da História, a eleitos, servidos pelos outros, paranóica mas generosa visão....
É justamente esta contradição entre passado glorioso e “diminuída realidade presente” que suporta treze anos de guerra colonial, defendendo um sonho passado sem expressão concreta presente senão no campo do imaginário (“Portugal Uno do Minho a Timor”), que conduzirá ao 3º “traumatismo profundo – análogo ao da perda da independência” e a “um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo”, isto é, à perda do Império em 1975. Ainda sob o efeito desta amputação do corpo-uno da imagem que sobre nós mesmos fazíamos, teria sido o projecto político de integração na Europa comunitária, a que aderimos em 1980, compensando a ferida da “descolonização”, que terá permitido a ultrapassagem incicatrizada desta ferida simbólica que, “em geral provoca noutros povos dramas e tragédias implacáveis”. Com efeito, desde 1949, em Heterodoxia I, que Eduardo Lourenço insistia no reatamento das relações abertas com a Europa como “O Diálogo que nos Falta” e só agora, 30 anos depois, vê Portugal apostar politicamente, enquanto projecto nacional, neste diálogo.



*Miguel Real
Escritor e Professor de Filosofia.
Com ligeiras modificações, este texto inédito, enviado gentilmente pelo Autor para Ler Eduardo Lourenço, foi publicado com o título “O ‘irrealismo prodigioso’” no Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1112, Lisboa, 15/V/2013, p. 11.