terça-feira, 14 de maio de 2013

Pensar Nove Décadas de Amizade (nº 30): Fernando Gil*


Fernando Gil
Foi em Lourenço Marques mas não me recordo como foi. Talvez ao acaso das estantes da Minerva Central, talvez por conselho de alguém – o Rui Knopfli, um dos raros a desconfiar, nesses pri­meiros anos de 50, da excelência do marxismo (como me irritava o seu cepticismo!)? Heterodo­xia-I foi um sismo num aluno do 7.º ano que estudava, devotada e afanosamente, os Quatro Clássicos, que com o Grande Timoneiro começavam a ser cinco. Imagine-se! Ao mesmo tempo que os cadernos de Lenine sobre a dialéctica de Hegel, mais ainda do que o temor reverencial de Marx, convidavam a ver em Hegel o genial pre­cursor, o inventor do «método» dialéctico – um modesto livro cinzento, assinado por um desconhe­cido, ousava pôr em dúvida a Aufhebung; e fa­zia-o, e esse era o busílis, a partir de posições que me pareciam manifestamente materialistas. Como não perceber que as críticas de Eduardo Lourenço batiam certo? E como poderia um adolescente, aflito como todos os adolescentes, não aplaudir secretamente a denúncia do Espírito Absoluto, a que aspirava, mas que me tornava insignificante aos meus próprios olhos? (Lia-se em Heterodoxia: «ou então afirma-se, com um vocábulo do piedoso Hegel preenchido com uma experiência de con­curso hípico, que o sujeito já não conta, está ul­trapassado», p. 53). Andava às voltas com o «papel do indivíduo na história» à sombra do velho Plek­hanov, com a «infra» e a «super»-estrutura, e a determinação em última instância e as suas imparáveis vantagens: sendo só em «última» instân­cia, o determinismo marxista aparecia como inte­ligente, anti, como então se dizia, «mecanicista» – e a insondável profundidade da «instância» dispensava ver em que consistia ela ao certo, e apurar as célebres «mediações». Ora, contra tudo isto, vinha Eduardo Lourenço tranquilamente di­zer e desde 1949: «basta que haja um só homem que transcenda a classe para que todos os ho­mens sejam susceptíveis de a transcender também» (p. 89). A esta como a outras luminosas evidências achavam-se, naturalmente, respostas. Mas não muito convincentes, Althusser não tinha ainda inventado uma prodigiosa causalidade que o é na própria medida em que não se deixa apreender; e, embora isso fosse pouco agradável, era patente que o existencialismo de Eduardo Lourenço nada tinha de comum com o idealismo filosófico, que ele criticava, e mais radicalmente – isso espantava na altura – do que o marxismo. Por denodados e meritórios que tenham sido os meus esforços, não houve maneira de transformar Eduardo Lourenço num inimigo ideológico; e suspeitava já, sem mo dizer em voz alta, que, em boa dialéctica, a criminosa «terceira via» era capaz de ser a melhor. Enchi «O segredo de Hegel ou o equívoco da dialéctica» de notas à margem, furioso e descoroçoado com a razão que em Eduardo Lourenço entrevia, aquela que procurava em Marx e que o marxismo enjeitava. E havia ainda o tom. Uma desenvoltura serena, a preocupação em ser justo, inclusive em relação ao marxismo. Nenhuma impertinência suspeita, nenhum deslize ad hominem davam azo a desconfianças. E, também, Heterodoxia foi um livro que se sentia escrito directamente, sem Pirenéus interpostos, dessa «Europa» que era um dos seus temas e um meu mito pessoal. Foram algumas semanas difíceis. Que fazer de Heterodoxia? Vergonhosamente – tentar esquecê-la… mas trazendo-a sempre no bolso (guardo ainda o meu exemplar, o n.º 421, rubri­cado pelo autor), a atrapalhar-me o conforto. Quando a reli, por 1959-1960, com o marxismo já para trás, respirei: podia autorizar-me estar de acordo, e compreendi então quanto a sua límpida lição me ajudara a não me atrasar tempo de mais pela ortodoxia. «Recusemos o absoluto humano de Calígula, a tentação da unidade a todo o custo, uma vez que sabemos ser a unidade o pretexto do imperador louco para cortar a cabeça ao povo romano. No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão é HETERODOXIA» (p. 15). O mesmo aconteceu com outros da minha idade. Quando nos pusemos a ler Merleau-Ponty, foram confirmações que en­contrámos. Nunca, entretanto, calhou conhecer Eduardo Lourenço: tanto mais fácil é vir teste­munhar-lhe a gratidão de um jovem de há trinta anos.



*Fernando Gil, (Muecate,Moçambique, 1937 –  Paris, 2006), filósofo.
O texto que aqui se reproduz foi publicado originalmente com o título “Heterodoxia em Lourenço Marques, 1953”, em Prelo-Revista da Imprensa Nacional/Casa da Moeda, nº especial, Lisboa, Maio de 1984, pp. 38-39.