quinta-feira, 11 de abril de 2013

Geração Fraterna

O desaparecimento de Óscar Lopes, no passado dia 22, suscitou inúmeras manifestações de pesar e de reconhecimento pela personalidade e pelo trabalho daquele que foi, sem dúvida, um dos protagonistas culturais do último século português. Nascido a 20 de Outubro de 1917, em Leça da Palmeira (Matosinhos), e com formação incial em Filologia Clássica e Ciências Histórico-Filosóficas, Óscar Lopes não foi apenas o co-autor da emblemática História da Literatura Portuguesa, preciosíssimo instrumento usado pelos estudantes de literatura ao longo de gerações e gerações, mas ainda um eminente académico da área da Linguística, um notável crítico de ficção e poesia, para além de um grande apaixonado por música e chá...
 Uma das pessoas solicitadas a dar o seu testemunho acerca da riquíssima personalidade foi, como é natural, Eduardo Lourenço que, em breve depoimento telefónico, declarou ao Público (Lisboa, 23/III/2013, p. 28) o seguinte: «Se a da Presença foi a geração dos nossos pais, a de Óscar Lopes e de Jorge Sena [casado com Mécia, irmã de Óscar] foi a dos nossos irmãos (...) Fizeram uma opção ideológica que marcou a cultura portuguesa de uma maneira dominante». Críticos, na medida do possível, do Estado Novo, Lopes e Sena «não recuaram», mesmo quando não recuar implicava sacrifícios pessoais.
E Eduardo Lourenço vai mais longe no perfil que traça de Óscar Lopes, dizendo que este «foi um dos maiores representantes, se não mesmo o maior, dessa galáxia marxista ou marxizante que veio a triunfar no 25 de Abril». Por outro lado, Óscar Lopes, segundo Eduardo Lourenço, «era um mestre. O que lhe interessava era saber como funcionava a língua, o que era absolutamente inovador e o deixava sozinho a investigar, já que ninguém em Portugal tinha conhecimentos para o acompanhar». O mesmo não se passava em literatura pois, neste campo, Óscar Lopes tinha António José Saraiva como «cúmplice».
Ao Diário de Notícias (Lisboa, 23/III/2013, p. 41), Eduardo Lourenço descreve Óscar Lopes como uma «das vozes mais autorizadas e representativas da cultura nacional».
No entanto, manda a verdade dizer que, apesar da fraternidade geracional, as relações entre os dois homens nem sempre primaram pela concórdia. Em 1967, por ocasião da saída do volume II de Heterodoxia, aconteceu uma espécie de polémica na sequência de uma recensão crítica de Óscar Lopes. Esse curto, mas algo crispado, diálogo, publicado nas páginas do Suplemento Literário de O Comércio do Porto, pode hoje ser revisitado em Heterodoxias, o primeiro volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, 1ª ed, pp. 357-358 e 546-547).
Dois anos volvidos, mais precisamente em 2 de Setembro de 1969, em carta enviada ao seu cúmplice António José Saraiva, Óscar Lopes pronuncia-se num tom duríssimo (mesmo se atendermos que a mensagem era de natureza pessoal, o que ajuda a compreender certo vocabulário utilizado...) acerca do famoso ensaio sobre António Sérgio que Eduardo Lourenço publicara na revista O Tempo e o Modo. Dado que a carta foi tornada pública, numa (incompleta e algo desastrada) recolha da correspondência entre Lopes e Saraiva, Ler Eduardo Lourenço recupera o excerto duro e contundente dedicado ao ensaísta e à sua crítica a Sérgio.

«Li o artigo do E. L. sobre o Sérgio. É incrível que gostasses daquilo. O E. L. escreve com uma elegância toda feita de es­quecimento do essencial: a crítica pertinente não adianta nada sobre a minha própria crítica de há muitos anos, reunida em Ler e Depois, com a diferença de se ficar em generalidades equi­valentes a uma caricatura. Repara na diferença entre a minha crítica à gnoseologia e à estética do Sérgio (maniqueísmo inteligível-sensível, racionalismo pseudo-matemático, etc.), e a do E. L. É injusto sublinhar a filosofia sergiana em comparação com o seu ensaísmo de temática histórica portuguesa (incluindo histórico-literária) concreta. A ideia do «Reino Cadaveroso» seiscentista é frágil. Mas a tese sobre Ceuta e 1385 renovou toda a problemática da história portuguesa. Cortesão, no seu melhor, foi discípulo de Sérgio. Magalhães Godinho, Virgínia Rau, Borges de Macedo, Joel, tu e eu aprendemos com ele a pensar em português. O E. L. é um facundo divulgador de Kierkegaard e Heidegger. Não tem a centésima parte da originalidade do Sérgio. E, pior que tudo, ignora-o. Fala dele sem o ter lido, tal como o S. minimizou o Aquilino de que só leu dois ou três livros a correr, e tarde demais. A crítica sergiana às duas políticas nacionais num artigo de 1925 é a primeira coisa seria­mente anticolonialista desde 1885 (a segunda foi o teu trabalho lido em Viana, que acarretou, talvez mais do que tudo o mais, a tua demissão). A polémica sebástica antecipou-se à guerra que no fundo visava. A crítica a Junqueiro fez data mesmo na história das ideias literárias em Portugal. David Mourão Ferreira e eu, tão avessos em tantas coisas (e eu, ao tempo, ferido por um ataque injusto do Sérgio, feito quando estive preso na sequência da polémica que ele teve contigo), coincidimos, independentemente um do outro, que Sérgio interessa muito como crítico literário, apesar de todos os seus defeitos. Tem um magnífico ensaio (entre outros) sobre o Eça, num dos últimos volumes, e outro sobre Camilo. Valorizou Tolentino contra o Fidelino, que o apoucava. Baniu o biografismo histórico-literário. Inaugurou a consciência das contradições internas a um escritor, a propósito de Antero e Oliveira Martins. Foi o grande animador do cooperativismo. Foi o primeiro pensador português a reagir eficazmente contra a historiografia rácica, e a impor a sociológica. Estou a dizer tudo isto à toa, conforme me ocorre. E sei muito bem aonde o E. L. quer chegar: é ao catolicismo, ao fideísmo irracionalista que não tem a coragem de confessar a máscara de palavreado existencialista de empréstimo. É por causa dos E. L.s, em grande parte, que os A. da C. D. e os M. V. têm tanta aceitação. Aquela verborreia como a do C. D. destina-se a perpetuar um ou... ou... que não nos deixa sair da cepa torta. E tu bates palmas a esta merda. Tu, que saltas de um ou para o outro ou.
Desculpa o que nesta carta improvisada haja de amargo ou furioso. Franqueza é amizade e confiança. Dize-me também o que tiveres a dizer com toda a brutalidade. Há três dias que trabalho umas 14 horas por dia, como é de resto frequente, e vejo hoje pelos jornais que a campanha eleitoral começou, para o que tenho de arranjar, não sei como, muitas mais horas. É tão fácil ser E. L.!» (António José SARAIVA; Óscar LOPES, Correspondência, Lisboa, Gradiva, 2004, pp. 222-223).
As coisas mudaram, mais tarde. E Pessoa Revisitado e Tempo e Poesia conhecerão as suas originais edições na casa portuense Inova, mais precisamente na sua excelente colecção Civilização Portuguesa, dirigida por... Óscar Lopes. Sinal que a geração encontrou por fim a almejada fraternidade? Ler Eduardo Lourenço julga que sim e apresenta aquela que cronologicamente foi a primeira recensão crítica de Pessoa Revisitado, escrita, como se poderá verificar em baixo, escrita por Óscar Lopes e impressa na badana do número dezassete da colecção que este dirigia. Ora, apesar de raramente citado ou até referido, este ensaio de Óscar Lopes sobre a poética de Eduardo Lourenço continua a ser, quatro décadas passadas, um dos melhores e mais fecundos que alguma vez se escreveu sobre Pessoa Revisitado. Também dessa vez (e ao contrário do que talvez se deva dizer da carta de 1969 a António José Saraiva, escrita num tom menos cuidado, mas isso seria um debate mais longo...) Óscar Lopes foi Mestre.