sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Dois pós-modernos?

Jeanne Moreau
Claudia Cardinale
 
Chegou esta semana às salas de cinema o mais recente filme de Manoel de Oliveira, O Gebo e a Sombra, película realizada a partir da peça teatral homónima de Raul Brandão e que conta com a participação dos seguintes actores: Claudia Cardinale, Michael Lonsdale, Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, Ricardo Trêpa e Jeanne Moreau. Como se sabe, O Gebo e a Sombra teve uma ante-estreia perante cerca de duzentas pessoas, no passado dia 19 de Setembro, no Salão Nobre do Palácio de São Bento, por ocasião da abertura da nova sessão legislativa da Assemblei da República. Entre os presentes nessa espécie de consagração oficial que o regime entendeu dedicar a Oliveira contavam-se, de acordo com o jornal Público do dia seguinte, e entre outras personalidades da vida cultural portuguesa, as actrizes Maria Barroso, Io Apoloni, Glória de Matos e Leonor Silveira. Eduardo Lourenço também assistiu à sessão, facto que não espanta dado quer o seu apaixonado interesse por cinema, quer a relação de amizade que o liga a Manoel de Oliveira (aliás, Eduardo Lourenço tem breves participações em dois filmes de Oliveira!). A referência que se faz às actrizes presentes (e implicitamente também às ... ausentes!) é directamente motivada por uma pequena estória que Francisco Seixas da Costa, embaixador de Portugal em Paris, narra no seu blog e que, com a devida vénia, a seguir se reproduz: «O que penso dele [de Eduardo Lourenço] e do muito que lhe devemos disse-lho numa simples homenagem que, há semanas, organizei em sua honra na embaixada.Mas vou contar uma história, passada com ele antes desse jantar, de que foram testemunhas Vasco Graça Moura e Guilherme Oliveira Martins. Espero que ele não leve a mal que a conte, porque ela apenas revela a juventude saudável de um homem sem idade. Lourenço chegou já sobre a hora do jantar, depois dos restantes convidados. Pediu-nos desculpa pelo atraso (que, na realidade, não existia) e explicou que acabava de chegar de Saint-Denis, nos arredores de Paris, onde fora encontrar Manoel de Oliveira, que aí filmava num estúdio onde se reproduzia uma rua do Porto (!). Um de nós perguntou-lhe a razão da deslocação. Curiosidade de ver Oliveira a filmar? Eduardo Lourenço deu uma daquelas gargalhadas contidas que lhe são típicas e, com uma jovialidade que só se ganha com a idade, revelou: “A verdade é que me tinham dito que o Oliveira estava, hoje, a filmar com a Jeanne Moreau e a Claudia Cardinale. E eu tinha curiosidade de ver, ao vivo, as duas senhoras”. E viu ?, perguntámos. “Não, já tinham ido embora e acabei por pagar uma conta calada de taxi...”». http://duas-ou-tres.blogspot.pt/2011/12/eduardo-lourenco.html
Ler Eduardo Lourenço não conseguiu encontrar declarações do ensaísta sobre O Gebo e a Sombra. No entanto, é possível recuperar um texto que apareceu no jornal Público por ocasião da estreia de “Non ou A Vã Glória de Mandar” e em que Eduardo Lourenço se refere a um dos filmes mais discutidos de Oliveira nos seguintes termos: «Bordado sobre a nos­sa “História”, a partir de um remate dela en­trevisto e mostrado como inevitável (e justa?) catástrofe, o filme de Manoel de Oliveira, co­mo quase todos os seus, nada tem a ver com a História, mas com a sua representação mítica. A sua linhagem não é dos historiadores, à Duarte Leite ou mesmo à Sérgio, por mais sergista que pareça a sua ideia de D. Sebastião. A sua linhagem é a dos mitólogos, à Jaime Cortesão, à Agostinho da Silva, mas também à Régio e à Pessoa, todos corrigidos e subtilmente desviados das suas visões mes­siânicas, mais ou menos euforizantes pela visão de Oliveira Martins».
“Para Cá do Espelho Mágico ou a grã glória de des-sonhar”, Suplemento Fim de Semana de Público, Lisboa, 12/X/1990, pp. 8-9.
Manoel de Oliveira
 
Em contrapartida, quatro anos antes, Manoel de Oliveira publica no Jornal de Letras um curioso texto dedicado a Eduardo Lourenço e que reza assim:
«Não sou eu de modo nenhum um literato, tenho até dificuldade em escrever – e tenho pena – mas a minha vocação é o cinema e é como se nele tivesse nascido. Mas, perante a solicitação que me fazem, não posso dizer não para falar sobre quem por duas vezes me disse prontamente sim para intervir em dois pequenos filmes meus: um feito em Franca, Nice à propos de Jean Vigo, e outro cá na nossa terra, Lisboa Cultural.
Considero Eduardo Lourenço particular­mente voltado para a reflexão literária e para a análise política. A estas duas facetas funda­mentais, acresce uma forte vontade de formu­lar também juízos e interpretações sobre o ci­nema e a pintura como expressões artísticas sem, evidentemente, esquecer a poesia que lhe é muito mais familiar. É certo que à literatura (ou aos literatos) está sempre aberto o campo do pensamento e o da reflexão artística, ou o da análise sobre quaisquer manifestações, di­gamos de expressão vital.
Vejo Eduardo Lourenço entre os intelec­tuais que melhor escreveu neste “reino da nos­sa Baviera”, segundo ele próprio classificou. Um homem que se quer a si mesmo como ac­tual e que acompanha as ideologias mais mo­dernas. Espírito fino mas inconstante, anima­do por uma ânsia de conhecer o devir. Um in­telectual autêntico, diria... E haverá verdadei­ramente autenticidade sem sinceridade? Mas que sei eu!... Culto, erudito, amante de Botti­celli, estudioso, inteligência perspicaz. Que mais direi...? Alguém que se desejaria um pós-moderno, ou de uma nova Renascença».
 Manoel de Oliveira, “Um pós-moderno”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 231, Lisboa, 6/XII/1986, p. 13.
Ler Eduardo Lourenço ainda não teve a oportunidade de presenciar O Gebo e a Sombra, mas não esconde a sua expectativa. É que, independentemente do que se possa pensar das obras de Eduardo Lourenço e de Manoel de Oliveira, não há dúvida que a vitalidade criativa e intelectual de ambos é absolutamente invejável. Têm ainda uma outra qualidade: o fascínio por belas actrizes. Serão também por isso dois pós-modernos?