terça-feira, 26 de junho de 2012

Só Deus os viu jogar juntos...



Num país futebolisticamente obcecado pelo duelo ibérico de amanhã e em que jogará por fora (em vários dos múltiplos sentidos desta equívoca expressão) o argentino Lionel Messi, talvez interesse recuperar as palavras de Eduardo Lourenço acerca das impossíveis comparações sobre quem é ou quem foi o melhor futebolista do mundo. Deste e de todos os tempos. Por exemplo, será Cristiano Ronaldo superior a Figo? E Eusébio? Terá sido ele mais jogador do que os outros dois?





O ensaísta responde: «Os santos da nossa época são outros. Eusébio, por exemplo, que há dias manifestava a sua frustração por ter sido designado como o sexto melhor jogador do nosso século [século XX]. Sem se ter por incomparável – que se calhar até é – Eusébio pensava num segundo lugar. Que foi o melhor do seu tempo português, quem o duvida? Que talvez tenha sido o segundo ou o terceiro do tempo mundial de Pelé, ou de Di Stefano é hipótese que não escandaliza. A verdade é que, por incomparável, ele ou os outros ídolos do seu tempo nem deviam admitir ser comparados. De qualquer modo, o que não tem sentido é comparar gente de épocas, contextos, códigos diversos. Não só Alexandre com Aníbal ou este com Napoleão, comparação clássica, mas também Galileu com Newton ou com Einstein (que são, afinal, um só “homem”), mas muito menos Gil Vicente com Shakespeare, ou Monteverdi com Mozart. Antes de estarem isolados pelo génio, cada um está isolado pelo seu tempo. No tempo português, a hora de Eusébio não foi a de Vitor Silva, nem a de Pinga ou de Peyroteo, como a de Borg não foi a de Rod Laver ou a de Copi a de Merckx. Essa gente nunca se conheceu. Estão separados dos outros como as estrelas, mesmo as próximas. Ninguém os pode comparar. Que mais não fosse, só por isso já seriam “incomparáveis”. Só Deus os viu jogar juntos. Mas não confiou as suas apreciações a ninguém.» (“Incomparáveis ou a tristeza de Eusébio”, Visão, 21/I/1999, p. 98).

quinta-feira, 21 de junho de 2012

José e Eduardo foram a exame


Ler Eduardo Lourenço não quer correr o risco de se equivocar desnecessariamente, mas julga que, pela primeira vez, o autor de O Labirinto da Saudade é tema de exame de Filosofia (que este ano regressou ao calendário oficial das provas, decisão que, sem qualquer ironia, vivamente se saúda) no ensino secundário. Tratar-se-á de mais uma consagração pública do ensaísta? Será que, por exemplo, o conceito de heterodoxia começou a constar das cábulas dos estudantes liceais? A bem dizer, não é esse exactamente o caso. E talvez seja mesmo exagero falar-se em tema de exame. O que sucede é que Eduardo Lourenço (na óptima companhia do seu amigo José Gil) aparece como protagonista de um argumento de lógica, cuja validade formal os examinandos teriam de testar, como se pode ver pela imagem que a seguir se apresenta.
Felizmente que o que estava em causa era apenas a validade do argumento e não a correcção do enunciado da primeira premissa que reza assim: «Se o António é um intelectual português contemporâneo, então leu Eduardo Lourenço e leu José Gil». O que está em questão não é averiguar quem é o António, tarefa interessante e seguramente não menos fácil do que a resposta à pergunta do exame, atendendo aos vários possíveis intelectuais portugueses contemporâneos que têm o nome em comum com o santo padroeiro de Lisboa. Tão pouco que os intelectuais portugueses contemporâneos, para o serem, têm de ler este ou aquele autor, ainda que estas não sejam, decerto, as piores sugestões de leitura. De resto, o consequente leitor de Eduardo Lourenço e José Gil é, desde logo, assinalável. Repare-se que os dois não são apresentados em alternativa, pois, de acordo com o enunciado da prova, quem lê Lourenço tem de ler Gil e isto surge com uma energia apodíctica. Felizmente que estas dúvidas e inquietações não são compatíveis com o espírito frio e calculador dos examinadores. E, de facto, a validade do argumento poderia ser testada mesmo se ele aparecesse expresso numa linguagem puramente simbólica. Dir-se-ia que, com sorte, é possível que alguns dos 5695 alunos (84% dos inscritos) que realizaram a prova sintam a curiosidade de pegar num livro de Eduardo Lourenço ou de José Gil. Se se chamarem António, então pode ser que, um dia, venham mesmo a ser considerados intelectuais portugueses contemporâneos. Nem que seja num argumento de exame.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Para Saramago*

 José Saramago e Eduardo Lourenço
(foto de Augusto Cabrita, Bruxelas, 1991)
Nenhuma Cassandra podia vaticinar que a geração da Utopia que foi a de José Saramago encontraria, entre estes muros lembrados do império perdido, a sua capela ardente e maravilhosamente imperfeita.
A realidade superou a ficcção. Mas só o fez porque, antes, a ficção, os sonhos de papel de um poeta filho da terra e da sua transcendência, converteu as suas fábulas em fábulas de ninguém e de toda a gente. os muros sem norte desta casa que a capital do País achou por bem conceder ao romancista que pôs o nome da sua terra no ecrã literário do mundo são o rosário de contos que o nosso fabulista-mor consagrou à sua musa Blimunda e ao numeroso séquito que a acompanhará para sempre.
Com Saramago entra nesta casa uma geração que desejou de olhos abertos, se não mudar o mundo, torná-lo digno de ser salvo da sua irredenta inumanidade. Cada um à sua maneira, Jorge de Sena, Vergílio Ferreira, Agustina, traz a sua luminosa sombra para fazer companhia ao autor de Memorial do Convento e de Todos os Nomes. Cada autor digno de memória resume a literatura do povo a que pertence e do mundo inteiro.
Que ao menos aí sejamos a chama da única pátria que os ventos da História não apagam da nossa memória precária.
Vence, 12 de Junho de 2012
*Mensagem enviada por Eduardo Lourenço por ocasião da abertura da Fundação José Saramago na Casa dos Bicos em Lisboa e publicada em Diário de Notícias de 13 de Junho de 2012, p. 50. Cf. também http://josesaramago.org/292010.html

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Finalmente Sociólogo?

Eduardo Lourenço (à direita) com o seu amigo Vergílio Ferreira numa época da pré-história da Sociologia em Portugal

Acaba de chegar às mão de Ler Eduardo Lourenço o muito interessante livro de Rita Ribeiro, A Europa na Identidade Nacional (Porto, Afrontamento, 2011). Trata-se de uma versão revista da Dissertação de Doutoramento em Sociologia defendida pela autora na Universidade do Minho em Setembro de 2008. Nas referências teóricas mobilizadas por  A Europa na Identidade Nacional destaca-se o ensaísmo de Eduardo Lourenço, designadamente algumas das suas reflexões acerca da cultura portuguesa e do seu diálogo (ou falta dele) com a Europa. Aliás, o prefácio do livro foi redigido por Maria Manuel Baptista que, como é sabido, tem dedicado grande parte da sua investigação académica ao estudo de Eduardo Lourenço e que não deixa de frisar a marca do ensaísta no trabalho que apresenta, designadamente através do conceito de hiper-identidade da cultura portuguesa.

O justíssimo relevo que é concedido por Rita Ribeiro ao autor de A Europa Desencantada não pode, nos nossos dias, surpreender quem quer que seja. Ainda assim, esse facto não deixa de ser sintomático de que alguma coisa talvez tenha mudado no reino epistemológico da Sociologia. A tal ponto que é aceitável que se recorra agora (finalmente?) às teses de um ensaísta cuja obra chegou, em tempos não muito distantes, a ser caracterizada como tendo uma «função profética [que], como é sabido, pertence ao domínio do sagrado e é incontrolável. Por sua vez a função analítica (psicanálise, psicologia, sociologia, antropologia) pertence ao domínio controlável da ciência» [José Veiga Torres, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 2, Coimbra, Setembro de 1978, p. 132]. Esta má vontade manifestada por sociólogos profissionais (e outros exemplos, inclusivamente de sociólogos mais célebres,  se poderiam dar...) em relação aos livros de Eduardo Lourenço talvez nunca tenha preocupado demasiadamente o ensaísta. Mas não há dúvida que ela decorria de alguns equívocos, ao que parece agora (definitivamente?) removidos.
Sobre este tópico talvez valha a pena recuperar até um parágrafo do estudo “Situação do Existencialismo”, publicado pela primeira vez em 1954 (!!!), ou seja, em plena pré-história da sociologia portuguesa, e que o leitor pode reencontrar no primeiro volume das suas Obras Completas, «Não temos outro remédio senão enquadrar a intenção que nos move dentro de uma preocupação geralmente qualificada de sociológica. Mas fazemo-lo sob certas reservas, a primeira das quais é a de atribuir um sentido e um alcance à explicação sociológica que poucos sociólogos estariam dispostos a admitir. Como se verá, a questão resume-‑se, em suma, em denegar à sociologia o carácter de ciência, relegando-a para aquilo que ela de resto nunca deixou de ser, como todas as chamadas “ciências do espírito”, isto é, Retórica, “discurso verosímil” à antiga e sábia maneira aristotélica. Os cultivadores dessas famosas “ciências do espírito” imaginar-se-ão mais pobres por não se suporem “científicos”, mas os seus estudos só serão sérios quando forem menos sérios do que eles os imaginam» [Heterodoxias, Lisboa, Gulbenkian, 2011, p. 230] .
A genuína satisfação que Ler Eduardo Lourenço agora testemunha pela publicação de A Europa na Identidade Nacional não se ressente minimamente por causa de um pormenor que talvez mereça uma levíssima reserva. Assim, quando se refere ao problema da chamada filosofia portuguesa, Rita Ribeiro afirma que «os nomes que se associaram ao Movimento da Filosofia Portuguesa constituíam a nata da intelligentsia nacional com aprovação e reconhecimento por parte do regime [Estado Novo]» [p. 90]. É, sem dúvida, uma tese discutível (para não dizer empiricamente refutável ou não controlável, se se preferir usar o jargão de um certo sociologismo) e que, porventura, desagradará quer aos adeptos do Movimento, quer aos ... defensores do próprio Estado Novo. Mas esse é assunto para discutir em outra ocasião, naturalmente.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O que eu queria mesmo era voar, voar!

 foto de António Pedro Santos (jornal i, 26/V/2012, p. 36)


foto de Alfredo Cunha (revista up, Maio de 2012, p. 31)
 
«José Carlos Vasconcelos: Gosta de História, dedicou-se à Filosofia, desejava ser poeta, escritor de ficção, autor de teatro - tendo escrito, na cabeça, pelo menos uma peça -, a música proporciona-lhe hoje uma emoção ímpar. O que não queria ser é o que é?
Eduardo Lourenço: Isso é agir por defeito (risos). Não me quero caluniar, mas sou muito consciente de que me falta a criatividade e originalidade de grandes figuras do passado e do presente. Tenho o sentimento dessa riqueza imensa e não me consigo situar, mesmo numa escala mínima, nessa família de gente que também quis atingir qualquer coisa. Eu só tenho existência ... física, embora quisesse ter uma espécie de existência angélica.O que eu queria mesmo era voar, voar!»
(entrevista: Visão, 22/V/2003, p. 154)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Sobre Sílvio Lima

Sílvio Lima



Numa semana em que o recém-criado Grupo de História e Desporto organiza, com o apoio do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e do CEIS20 da Universidade de Coimbra, o I Congresso de História do Desporto, é com certeza oportuno evocar a figura de Sílvio Lima. Com efeito o autor de Ensaio sobre a Essência do Ensaio, que para muitos é o primeiro filósofo do desporto português,  foi sem dúvida quem iniciou, de modo academicamente fundamentado, o estudo da temática desportiva de um ponto de vista inserido no que hoje se chama as ciências sociais e humanas, ao publicar, nos finais dos anos Trinta do século passado, três livros de ensaios que, através das suas teses polémicas, como era timbre de Sílvio Lima, ainda hoje são de muito proveitosa leitura. O desporto era, na altura, um objecto científico bastante mais exótico do que é hoje, sobretudo aos olhos de uma Universidade pouco atenta às mutações vertiginosas da sociedade. Por isso, a audácia de Sílvio Lima em pensar o desporto é ainda mais surpreendente e digna de admiração.Como já aqui se disse, Sílvio Lima foi, juntamente com Joaquim de Carvalho, um dos Professores que decisivamente  marcou a passagem de Eduardo Lourenço por Coimbra. Ora, se, sobre Joaquim de Carvalho, existem vários textos do antigo discípulo (cf. Heterodoxias, o primeiro volume das Obras Completas), já em relação a Sílvio Lima as referências são mais escassas e sobretudo dispersas. É por isso do maior interesse recuperar dois excertos de uma entrevista realizada por Paulo Archer a Eduardo Lourenço e que, embora parcialmente, vem reproduzida em Sílvio Lima: um místico da razão crítica (Da incondicionalidade do amor intellectualis), uma volumosa e muito documentada Dissertação de Doutoramento em História, defendida em 2009, na Universidade de Coimbra e cuja publicação em livro já tarda. O primeiro dos excertos que, com a devida vénia, Ler Eduardo Lourenço hoje apresenta diz respeito a Sílvio Lima como pedagogo, designadamente através de uma comparação com Joaquim de Carvalho. 

«Joaquim de Carvalho era um Mestre austero, um universitário e académico de tipo clássico, embora afável e por vezes acessível, transportava para as aulas um mundo de conhecimentos. Era um peso pesado de erudição. Solidamente alicerçadas no cartesianismo as suas aulas de Filosofia, sobretudo as de teoria do conhecimento, eram o espelho lógico dum pensamento racionalista e crítico, do qual ele próprio dava modelo exemplar, quer na inventariação dogmática quer na exposição metódica e equilibrada dos diversos passos. Era um professor clássico, repito, que impunha respeito pela sua presença e capacidade de saber. Mas era pessoalmente acessível. Talvez certa aura de inacessibilidade tenha a ver com a toca familiar. Joaquim de Carvalho vivia num primeiro andar, em sua casa, e aí se isolava daquela familota toda, daqueles filhos todos, que viviam por baixo, no rés-do-chão, num mundo à parte, do qual se distanciava.
Sílvio Lima apenas foi meu professor de Psicologia (penso que durante o meu tempo de estudante universitário apenas estava confinado à leccionação de Psicologia), pelo que é mais difícil fazer um cotejo sob a estrita perspectiva crítico-filosófica. No entanto, é claro que as suas aulas eram de uma abertura e elasticidade surpreendentes, os temas, as áreas de conhecimento abriam-se umas às outras, as exposições eram empolgantes e o diálogo era procurado, estimulado e mantido. Sílvio Lima era um professor brilhante, mas de um raro brilhantismo que deslumbrava pela sua capacidade de interrelacionamento, fascinando o auditório com uma comunicação penetrante e um poder de argumentação muito lúcido. Com uns olhos muito vivos e inquietos que espreitavam assuntos e inquietações, Sílvio Lima seduzia-se por Renan, por Guyau, sobretudo por Guyau, que citava e comentava muito. Nas suas aulas procedíamos a leituras críticas de textos, discutiam-se obras e autores com a maior amplitude, eram aulas diferentes, não se confinava aos codicilos da Psicologia ou da Psicologia Experimental, ao domínio científico restrito. De resto, a Faculdade no contexto da Universidade, mantinha uma certa imagem de escola. Repare que mesmo Miranda Barbosa, que era um tomista ou um neotomista, com quem me iniciei na leitura de Kant (não foi possível com Joaquim de Carvalho porque estava confinado então à teoria do conhecimento, lamento porque era um neokantiano clássico na linha de Cohen e Natorp), não só permitia como estimulava o contraditório, a opinião contrária. De certa maneira, Kant fez parte do itinerário da minha autoformação, foi um trabalho de autoaprendizagem. Mas pela agilidade intelectual e pelo virtuosimo prático da comunicação pedagógica, Sílvio Lima sobressaía do conjunto dos meus mestres e professores».

O segundo excerto aqui repescado reporta-se ao livro O Amor Místico, obra polémica e apreendida devido ao seu carácter ousado ou até, aos olhos dos espíritos mais sensíveis (ou menos, conforme a perspectiva que se pretenda adoptar...), escandaloso. Eis como Eduardo Lourenço se refere ao tema:

 
«O livro não existiu, por assim dizer, não chegou a existir, era um projecto do qual apenas conhecemos uma parte e mesmo essa foi proibida e penso que a edição foi apreendida. No meu tempo de escolar universitário, na primeira metade dos anos Quarenta, as duas obras de Sílvio Lima, aquelas Notas Críticas ao livro do Cardeal Cerejeira e o Amor Místico, apareciam por vezes na papelaria do Cunha das Valsas (assim chamada porque se especializara na venda de colecções partituras e libretos), na Rua Ferreira Borges, perto já do Largo da Portagem, onde as procurávamos, imagine, entre outros livros escondidos de alfarrábio. Por isso, aqueles livros de Sílvio Lima não tinham existência oficial. Mas foi, na época, uma aventura, uma estranha aventura escrever esses textos. Parece que a ninguém, à época, interessava o tema, mesmo as prioridades intelectuais da Esquerda em oposição declarada ao regime não se encaminhavam nesse sentido. Foi uma perigosa aventura destemida e Sílvio Lima agiu e colocou-se numa arriscada posição solitária, fragilizando-se.
Como era possível escrever livros daqueles, naquele tempo? Parece absurda a posição em que se estava a situar Sílvio Lima, mas era um claro acto de coragem. Cerejeira, manteve-se em silêncio, durante toda a polémica, mas Trindade Salgueiro, não sei se por indicação de Cerejeira, talvez nem fosse preciso, talvez nem tenha existido, para mostrar serviço e para mostrar que sabia fazer esse serviço, executou o trabalho de condenação pública do culposo