sexta-feira, 27 de maio de 2011

Miranda Barbosa, Carlos de Oliveira e ... Marx!





Decorre hoje e amanhã, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, o Colóquio Internacional Carlos de Oliveira, iniciativa tão oportuna quanto merecida, em virtude da reconhecida importância que a obra do escritor português (Belém do Pará, Brasil,10 de Agosto de 1921 - Lisboa, 1 de Julho de 1971) indiscutivelmente tem. Infelizmente e ao contrário do que estava previsto, Eduardo Lourenço, retido em Vence por motivos de saúde, não pode participar no colóquio.
Como já se referiu em texto anterior deste blog, Carlos de Oliveira e Eduardo Lourenço foram, além de colegas de curso, amigos muito próximos, mesmo que nem sempre estivessem de acordo entre si, tendo chegado mesmo a ter uma séria desavença pessoal. Mas, para já, recorde-se um episódio passado em plena aula do Doutor Arnaldo Miranda Barbosa, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade Coimbra e em que, para além do autor de A Essência do Conhecimento (1947), intervem Carlos de Oliveira e, embora de forma mais discreta, ... Eduardo Lourenço. Quem narra o acontecido é Alexandre Pinheiro Torres numa “Sessão testemunhal sobre o neo-realismo”, mesa-redonda realizada em Matosinhos, a 10 de Fevereiro de 1996. O texto da sessão encontra-se na revista Vértice (II Série, n.º 75, Lisboa, Dezembro 1996, pp. 59-89).



O quartanista Carlos Alberto Serras de Oliveira

«Alexandre Pinheiro Torres: Recordo de Carlos Oliveira me ter contado (não sei se ele estava a fazer blague) que numa determinada aula tinha considerado Karl Marx como um filósofo e [o Professor Arnaldo] Miranda Barbosa teria dito “não posso admitir que se diga nesta aula que o Karl Marx era um filósofo”. Carlos de Oliveira conta que disse “se eu não posso dizer, nesta aula, que Karl Marx é um filósofo, então não estou aqui a fazer nada”. Sai da aula imediatamente seguido por Eduardo Lourenço. O que há de verdade nisto?
Eduardo Lourenço: Espero que seja verdade... mas não me lembro. Se foi assim, foi óptimo. Primeiro, porque é exacto: Karl Marx é efectivamente um filósofo, além de ser um sociólogo, um grande economista, um grande ideólogo, etc. É certamente um filósofo e eu, como estudante de filosofia, já naquela altura estava pelo menos a par disso: existia um grande autor do século XIX, autor de O Capital e de outras obras importantes. mesmo só a título de simples informação filosófica, já sabia que esse homem contava... Nessa altura, não tinha provavelmente consciência de o que era o marxismo na História, o marxismo já encarnado propriamente na História enquanto doutrina que condicionou uam revolução que é já a sua expressão» (p. 62).

 A julgar pela caricatura de Vasco (na revista Prelo de Maio de 1984) Marx sempre foi uma dor de cabeça para Eduardo Lourenço que, em 1979, publicará O Complexo!

Como se disse atrás, nem sempre a amizade resistiu às peripécias da vida dos antigos colegas e, numa entrevista bastante mais recente, Eduardo Lourenço explica por que motivo o livro O Sentido e a Forma da Poesia Neo-Realista, onde analisa a obra poética de Carlos de Oliveira (e também a de João José Cochofel e Joaquim Namorado), constituiu, de certo modo, uma forma de mostrar a amizade que sempre sentiu pelo autor de Uma Abelha na Chuva:  «A verdade é que escrevi esse livro para me reconciliar com o Carlos de Oliveira, não ideologicamente, mas pessoalmente. Por isso é que a parte que trata dele é particularmente cuidada. Eu era muito amigo do Carlos e, por ocasião de umas eleições quaisquer, houve uma trapalhada entre ele e o dr. Paulo Quintela, que também era da oposição, mas da corrente liberal, ou social-democrata, embora não se usasse o termo. Não sei reproduzir bem a história, mas era já o PCP com aquela coisa de ser muito severo com quem não alinhava pelas posições deles. O Carlos parece que disse que uma delegação desses liberais que fora a Lisboa tinha traído, ou feito isto ou aquilo. Eu estava ali metido porque o Carlos me tinha falado no assunto, e eu falei ao Torga, que por sua vez contou ao dr. Quintela. Quando soube das acusações do Carlos de Oliveira, o dr. Quintela ficou danado e houve um confronto muito chato numa livraria, que acabou aos empurrões. Uma coisa horrível. O Carlos achou que eu tinha estado na origem daquela peripécia, e eu fiquei com muita pena de nos termos afastado. Penso que a motivação para escrever o livro foi essa, ainda que também houvesse da minha parte uma certa nostalgia por essa que tinha sido a minha geração. O livro é uma espécie de romance disfarçado. Deve ser a coisa mais sincera, mais no primeiro grau, que eu escrevi» (“Eduardo Lourenço. Retrato de um pensador errante”, por Luís Miguel Queirós, Revista Pública de Público, Lisboa, 13/V/2007).
Esta entrevista está disponível no seguinte endereço electrónico: http://static.publico.pt/docs/cultura/eduardolourenco/08.html





Recorde-se, por fim, que já em Maio de 1945, ou seja, no ano em que Eduardo Lourenço concluiu a sua Licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas, aparece, precisamente na revista Vértice, uma recensão crítica (que, não sendo totalmente elogiosa, não deixa também de se referir a algumas virtudes literárias do autor) ao romance Alcateia de Carlos de Oliveira. Entre outros aspectos, Eduardo Lourenço assinala o que considera ser a excessiva gravidade nos livros do seu colega (que apenas concluirá o curso em 1947), escrevendo que, em Carlos de Oliveira, «O humor é possivelmente a ausência mais visível no tecido psicológico dos seus romances. Raríssimos os personagens que riem alguma vez. Todos eles são ressentidos físicos ou morais e as suas almas foram caldeadas, ressequidas, pelo vento do ódio e da violência» (Vértice, nº 12-15, Coimbra, Maio de 1945, p. 53). A verdade é que o próprio Carlos de Oliveira também não ficou propriamente muito satisfeito com Alcateia e, por isso, deixou indicações precisas para que este romance (cuja reescrita por diversas vezes terá tentado) não mais viesse a ser editado (Cf. “Nota dos Editores”, Obras de Carlos de Oliveira, Lisboa, Caminho, 1992, p. 9).