quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Triste figura em Paris


  
O Diário da Manhã, a 30 de Abril de 1963, em editorial assinado pelo seu director Barradas de Oliveira, chamava a atenção dos leitores para a “Triste figura de Oposicionistas em Paris” feita na sessão de terça-feira passada de Les Mardis de Preuves. “Uma tristeza” concluía sem hesitar, tendo por base o relato que lhe tinha sido enviado “por um amigo”. Aos leitores deste jornal o director elucidava que «A revista Preuves faz às terças-feiras umas sessões em que vários oradores opinam e discutem sobre tema determinado. A da semana passada trataria de “Le Portugal d’aujourd’hui” e teria como oradores sobre diferentes aspectos do mesmo assunto: Situação económica: Francisco Ramos da Costa; Obscurantismo e vida cultural: António José Saraiva; Os cristãos e o regime: Eduardo Lourenço de Faria; Guerra e descolonização: Fernando Piteira Santos».

[Na primeira foto, tirada  em Genève no ano de 1964, Francisco Ramos da Costa, à esquerda, com Tito de Morais e Mário Soares, fundadores do Partido Socialista. Na foto à direita, António José Saraiva. A revista Preuves, editada pelo Congress for Freedom Culture e apoiada financeiramente pela CIA,
foi um espaço de encontro de intelectuais da esquerda não comunista]



Continuando o editorial, Barradas de Oliveira considera ter sido a sessão um “triste espectáculo” e é, naturalmente, severo nos juízos que faz dos oradores. Assim o «Dr. Francisco Ramos da Costa, apresentado como um economista brilhante, fez uma exposição confusa, atrapalhada, sem nível, com números estatísticos evidentemente falseados», enquanto o «Dr. António José Saraiva, anunciado como literato de palavra cintilante, começou por não cintilar na dicção que foi aflitiva. Depois atirou para a sala com todas as falsidades, ainda as mais abstrusas, que ocorreram à exuberância da sua fantasia esquentada». Mas o tom do editorialista muda por completo quando se refere ao terceiro expositor, considerando que o «Dr. Eduardo Lourenço de Faria fez uma conferência luminosa, inteligentemente conduzida, com a preocupação nítida de imparcialidade. Conferência de um professor e não de um político. Aplausos fortes da assistência e movimentos de reprovação dos outros conferencistas (Claro!)».



A identificação do “amigo” que de Paris havia enviado estas informações leva-nos a duas hipóteses a partir de documentos constantes da cópia do Dossier da Pide existente no Acervo de Eduardo Lourenço. O primeiro documento é uma carta datada de “Paris, 24 de Abril 1963” e enviada a César Moreira Baptista, à época director do SNI, por José Augusto dos Santos director da Casa de Portugal na capital francesa. E no que se refere à intervenção de Eduardo Lourenço observa: «Incontestavelmente, o único orador (de interesse) de toda a reunião. Começando por declarar que o tema que ia tratar seria “L’Église et le régime de Salazar” (e não “Les Chrétiens et le Régime”) […] o tom da sua exposição – serena, desapaixonada e bem conduzida – não agradou ao auditório que manifestava, por vezes, certa impaciência». Todavia, e como observação final, José Augusto dos Santos não deixava  de «notar que o Snr. Eduardo Lourenço de Faria não se referiu à última Encíclica papal que, entretanto, foi citada por outros, confusamente atirada para o ar, como uma pedra – melhor, como uma bandeira…»

A segunda hipótese de identificação do “amigo” informador de Paris pode ser feita através das informações que o jornalista A. Horta e Costa envia, a 24 de Abril de 1963, a Dutra de Faria, Director da A.N.I. e que transcrevemos em parte, uma vez que enumera os temas através dos quais a exposição foi feita: «Terceira Intervenção-conferência: Do Sr. Eduardo Lourenço de Faria (“Les Chrétiens et le Régime”). Conferência brilhante e elevado relato desapaixonado (foi o único da noite) das ligações existentes entre Salazar, o regímen salazarista e a Igreja. Exposição iniciada a partir do momento em que o Professor de Coimbra era colaborador do jornal Novidades, do momento em que este jornal publicou um retrato do Dr. Salazar encabeçando-o com o título de apresentação dum novo valor que se deveria chamar para a gerência nacional. Amizade estabelecida entre o Dr. Salazar e o Cardeal Cerejeira. Acordos entre o Governo e a Igreja. Influência da opinião e conselhos da Igreja para um menor endurecimento do Regímen. Primeiras dissenções baseadas e provadas (cito) na carta pastoral do Bispo do Porto, Dom António. Como já escrevi: conferência brilhante, impregnada de imparcialidade e de honestidade. Um relato histórico do qual o conferencista não procurou tirar ensinamentos limitando-se a expor, segundo a sua maneira de ver, factos susceptíveis de serem analisados. Fortemente aplaudido por toda a assistência. Movimentos de reprovação dos outros conferencistas». E Horta e Costa terminando o seu relato de todas as intervenções, finaliza a carta com o parágrafo seguinte: «Como vê, uma reunião sem interesse e, tenho a impressão, sem consequências. A existirem parece-me que elas serão benéficas para nós. Das três horas de contacto com esta elite da oposição, que dizem em Paris que será o núcleo de um possível futuro governo, não posso deixar de fazer votos para que Deus Nosso Senhor dê muitos anos de saúde ao Governo de Salazar. Confesso que esperava mais».

Interrogado Eduardo Lourenço como se poderia identificar no seu Acervo o texto que serviu de base a esta intervenção, ele afirmou não recordar a existência de um só texto até porque havia improvisado durante a sessão. Contudo, no início da década dos anos 60 este assunto acompanhara a sua reflexão e algumas páginas existiriam, haveria que procurar. Uma pesquisa posterior para reunir o material, na sua maioria inédito, que virá a ser incluído no Volume Tempo e Politica (com a organização de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi) das Obras Completas veio demonstrar factos importantes e nessa investigação foram essenciais duas cartas de Joaquim Barradas de Carvalho das quais se transcrevem alguns excertos. E pela sua leitura pudemos chegar a três conclusões:

1) Eduardo Lourenço pensou efectivamente abordar o tema inicial que lhe tinha sido proposto para a sessão, pois num conjunto de onze páginas, presas por um clips, na primeira escreve: «“Les Chrétiens et le Régime”. Si on pouvait prendre à la lettre le titre de mon intervention – titre qui m’a étè fourni pas les organisateurs amis de cette rencontre – ma tâche en serait simplifiée. Les “Chrétiens et le Regime”, deux abstractions face à face, tout deviendrait clair. La question, on s’en doute bien est tout autre et c’est celle-là la vraie question, ou tout au moins sa difficulté…»

2) O ms. que Barradas de Carvalho devolve, e do qual foram publicados alguns excertos no Jornal da Liga dos Direitos do Homem, permanece inédito na sua totalidade pois estando assinado com o pseudónimo “Marcos Portugal” facilmente terá fugido à atenção dos investigadores.

3) Existe no Acervo um conjunto de 26 pp. reunidas com o título “L’Église et l’État-Nouveau”. Ms. não assinado e por isso, certamente não concluído, seria este o texto a ser publicado na revista Esprit, após a conferência, conforme desejo manifestado por Barradas de Carvalho?
João Nuno Alçada



Duas Cartas de Joaquim Barradas de Carvalho
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Paris 8/IV/63



Caro Amigo

Não vou hoje penitenciar-me pelas cartas que lhe não escrevi e por tudo o que não fiz e devia ter feito relativamente ao meu amigo Eduardo Lourenço de Faria. O seu notável artigo L’Église et le régime de Salazar serviu para o Jornal da Liga dos D[irei]tos do Homem, onde saiu um excerto. Pelo mesmo correio, em envelope registado lhe envio o seu original, assim como o nº do dito Jornal. Mas o que me traz hoje a escrever-lhe, e urgentemente, (esta carta seguirá “expresso”) é uma sessão que se realizará em Paris no próximo dia 23 (3ª feira), numa sala próxima dos Campos Elíseos, e organizada por uma coisa chamada Congrès pour la Libérté de la Culture. […] Publicam uma revista luxuosa e bem feita chamada “Preuves” e dois dos franceses que estão aqui à frente da coisa são o François Bondy e o Tavernier. Enfim uma coisa “comme il faut” , em que não podemos ser acusados de comunismo. Ora esta organização faz todas as 3.as feiras sessões de apresentação de problemas seguidos de discussão. Houve há dois ou três meses uma sessão sobre a Espanha, em que fizeram exposições o Gil Robles, o Prados Duarte […] a Elena de la Souchère e o autor do Hino da Falanje […] Dionísio Ridurejo. A partir desta sessão houve quem se lembrasse de que Portugal também existia, e daí sermos convidados a uma sessão sobre Portugal na 3ª feira, 23 de Abril. O Mardi-Preuves de 23 de Abril intitular-se-á Le Portugal d’Aujourd’hui e farão exposições de 15 a 20 minutos, seguidas de discussão, as seguintes pessoas […] Está o meu amigo de acordo com o este programa e com a sua colaboração? Pedia que me mandasse dizer urgentemente. Se possível por telegrama […]

Cá esperamos o seu telegrama com uma resposta afirmativa o seu amigo fixe

Joaquim Barradas de Carvalho



P.S.

Mando-lhe em envelope separado o seu texto que me parece óptimo para a sessão de 23 e um nº do Jornal da Liga dos D[irei]tos do Homem

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Paris, 16 /IV/63



Caro Amigo

Duas palavras apenas para lhe dizer que cá o esperamos na próxima 2ª feira, 22. A sessão é na 3ª feira, 23 à noite, O Congresso para a Liberdade da Cultura e a revista “Preuves”, pagam-lhe a viagem de ida e de volta e dois dias de hotel em Paris. Foi isto que me disse o Tavernier há poucos dias. Cada exposição não deve demorar mais de 15 a 20 minutos. A sua intitula-se “Les Chrétiens et le Régime”. Será depois publicada pela Revista “Preuves”. Convinha que você fizesse depois um artigo no género daquele que me mandou e que eu lhe devolvi para a revista “Esprit”. O Echevarria em tempos disse-me que Você queria aumentar e corrigir esse texto. Foi esta a razão porque eu não fiz força para que ele saísse no “Esprit” […]



Com os cumprimentos a sua Mulher, um abraço do amigo fixe

Joaq[uim] Barradas de Carvalho