segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Correspondência com Delfim Santos (1958-1959)




Entre o material que tem vindo a ser descoberto e organizado por João Nuno Alçada (a partir da documentação existente na antiga casa de Vence do ensaísta: cf. fotografia em cima), no já aqui tantas vezes mencionado projecto realizado no âmbito do Centro Nacional de Cultura, conta-se um valioso número de cartas que Eduardo Lourenço recebeu de imensas figuras da cultura contemporânea portuguesa (e não só...). Ler Eduardo Lourenço dá hoje conta, através de uma muito pequena parcela, da correspondência mantida com Delfim Santos, publicando o teor de duas cartas: uma expedida, a outra recebida. A Filipe Delfim Santos, que presentemente prepara o volume Delfim Santos e o Brasil, dedicado às relações que o seu Pai, Delfim Santos (numa foto inédita de 1953, em baixo), manteve com intelectuais que viviam do outro lado do Atlântico, muito agradece Ler Eduardo Lourenço a cedência, a transcrição e as respectivas notas da missiva de Eduardo Lourenço  (um documento que, com muito gosto,  aqui se publica, juntamente com a transcrição da resposta de Delfim Santos) e sobretudo a nota introdutória que redigiu para contextualizar este material ainda inédito. Para saber mais sobre a obra e a figura de Delfim Santos, aconselha-se vivamente a visita de http://www.delfimsantos.org/.


«Já desde o primeiro semestre de 1957 que o Reitor da Universidade da Bahia, Edgar Santos, envidava esforços através do Instituto de Alta Cultura (IAC) para obter “um ou dois professores de Filosofia”, dado que o titular, José Antônio do Prado Valladares (1917−1959), ensaísta, jornalista, crítico e historiador de arte e museólogo não era propriamente professor de Filosofia e tinha além do mais recebido uma bolsa do IAC para estagiar em Portugal no ano de 1958. Valladares ainda regressaria a Salvador a tempo de participar na criação do Museu de Arte Sacra do Convento de Santa Teresa, integrado na Universidade da Bahia por ocasião do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (10.08.59), mas morreria pouco após em 23.12.59 em acidente aéreo perto do Rio de Janeiro.

Em Fevereiro de 1958, o ministro da Educação, [Francisco] Leite Pinto recusou autorização ao catedrático da Secção de Pedagógicas da Faculdade de Letras de Lisboa para partir em Março com os seus colegas por motivo da incumbência que lhe fizera de elaborar o plano do futuro Instituto Superior de Ciências Pedagógicas, mas outras gestões foram mais bem sucedidas pois segundo informação oral de Eduardo Lourenço «por intermédio de Hernâni Cidade, que estava também na Bahia, foi referido o meu nome. Eu estava como leitor em Montpellier e arrisquei porque a minha mulher estava de licença da Universidade. Depois não quis mais arriscar porque poderia pôr em causa a carreira dela e ao fim de um ano decidi voltar para França. Enquanto lá estive e por minha recomendação foram chamados Agostinho da Silva e Adolfo Casais Monteiro, dois colegas de Delfim Santos na antiga Faculdade de Letras do Porto».

Nemésio, em 24 de Maio de 1958, já instalado na capital baiana, anunciava a Delfim: “Chegou há dias o Eduardo Lourenço de Faria que ficou logo assustado quando ouviu que um docente do grupo perfaria 24 tempos semanais! Falso rebate... Os colegas brasileiros vêm depressa à razão. Aquilo é um absurdo do regime oficial dos estudos que não temos de cumprir (é claro). Eu tenho 5 aulas por semana − e chega, com os suores que destilo”.

Tendo Delfim Santos adiado a sua partida para agosto de 1958, acabaria por declinar definitivamente a proposta por razões que se prenderam com a doença de sua Mãe. “− Não ter acedido ao convite foi a sorte do seu Pai − disse-me um dia Eduardo Lourenço −, as condições eram péssimas e ao exigir sair do hotel onde me hospedavam (Hotel da Bahia) para acomodações próprias senti que estava a constranger o reitor Edgar dos Santos, e este não era homem para ser constrangido de forma alguma. Então no ano seguinte vim-me embora”. Para além dos problemas de alojamento também a assiduidade e interesse dos discentes não satisfizeram Eduardo Lourenço; a viúva de Delfim Santos recorda um episódio que o marido lhe transmitiu das queixas que o jovem professor, chegado à Bahia com 35 anos, teria feito em visita a casa daquele, após terminada a experiência: ao perguntar certo dia “− Porque não veio ninguém à aula de ontem?” − recebeu resposta pronta “− Ué, tava chovendo, Professô!”. [Filipe Delfim Santos, 25 de Janeiro de 2011]




Documento nº 1: De EDUARDO LOURENÇO para DELFIM SANTOS, 12.58

[cartão postal] [impresso: Sinceros Agradecimentos e os melhores Votos para um Feliz Ano Novo]


Bahia, Natal de 58

Senhor Doutor:

Será que o próximo ano o trará até estes largos mortos, [alusão à imagem impressa no verso do postal, o Largo do Cruzeiro de São Francisco, no Pelourinho, São Salvador da Bahia] cheios de luz e ouro da nossa ex-colónia? Entre os vários votos que faço para o seu Novo Ano este é o mais imediato. Não são paragens muito propícias à recepção da Filosofia, mas não deixam de ser evocativas e de nos reenviar a um tipo de meditação estranhamente contrastante com o espírito deste continente aistórico que de todo o coração a repudia. E é isto sobretudo que nos obriga a pensar até se a Filosofia não é fenómeno estritamente europeu, de artificial transplantação em outras paragens. Para prova pode dizer-se que tudo quanto pensa aqui, a nosso modo, é de raiz europeia, emigrados de uma ou duas gerações.

Apesar disso convém enraizar mesmo o enraizável, na medida das nossas posses. É possível que dadas as facilidades do Magnífico Edgar, Reitor da Bahia inteira, se possa publicar aqui uma Revista de Filosofia. Aqui, mas com substância de alhures. Será um pouco traiçoeiro aproveitar um cartãozinho festivo para lhe pedir a sua necessária colaboração? O Senhor Doutor já o sabe: a projetada Revista está inteiramente ao seu dispor e por ela antecipadamente lhe agradeço.

Renova-lhe os seus melhores votos, ao Senhor Doutor e Ex.ma Família, com um abraço amigo o

E. L. Faria

Eduardo Lourenço de Faria

Edifício Mariglória, ap. 404

R. Padre Feijó

S. Salvador – Bahia




Documento nº 2: De DELFIM SANTOS para EDUARDO LOURENÇO, 09.02.59

[original manuscrito]

[O envelope tem o carimbo da Estação dos Correios do Largo do Rato, em Lisboa, com a seguinte data «9 Fevr. 59. 16h00» e o endereço: «Ex.mo Dr. Eduardo Faria, Edifício Mariglória, Ap. 404, R. Padre Feijó, S. Salvador da Bahia, Brasil». No verso do envelope Eduardo Lourenço anotou «Resp. 30-3-59», porém não foi encontrada ainda a carta de resposta].

Meu caro Eduardo Faria:

Os melhores agradecimentos pelos seus votos. Parece que sim, que irei à Bahia por ocasião do Colóquio, mas a certeza ainda não a tenho pois as secretarias ainda nada disseram de positivo. Pelo que me diz continua intrepidamente o seu ofício de cavador, isto é, teimosamente a transplantar raízes que já prometem mostrar o tronco em forma de revista. Decerto que pode contar comigo quando a hora chegar de mostrar os primeiros frutos. Este metaforismo botânico foi-me sugerido pelo seu cartão. Isto por aqui continua como sabe. O anunciado Instituto Superior de Educação que me tem aqui retido todo este tempo ainda não se vislumbra. Dificuldades e mais dificuldades. Espero a oportunidade de longa conversa diante de algum vatapá só para agosto. Se antes precisar de mim avise. Isto é, se a revista aparecer antes dessa data, o que não julgo muito possível. Cumprimentos a sua Esposa e o abraço amigo do seu

Delfim Santos


Fev. 59